O Teatro do Oprimido, a resistência contra a opressão e o legado de Augusto Boal

“É isto que significa humanizar a humanidade: queremos que o “homem deixe de ser o lobo do homem”, como dizia um poeta.” - Augusto Boal
Engenheiro de formação, Augusto Boal é hoje um dos nomes inescapáveis do teatro brasileiro. Sua trajetória de dedicação ao teatro, mas ainda mais essencial, dedicação à gente e à luta pelo Brasil deu fruto ao emblemático “Teatro do oprimido”, nome de uma técnica teatral, mas também de um livro, escrito em exílio na Argentina, após ter fugido do Brasil por ter sido e preso e torturado em 1971 durante a ditadura militar.
Um dos textos iniciais do livro trata diretamente sobre a relação do Teatro do Oprimido diante das dinâmicas de poder estabelecidas entre oprimidos e opressores.
“Oprimidos e opressores não podem ser candidamente confundidos com anjos e demônios. Quase não existem em estado puro, nem uns nem outros.”
Entre limitações e usos do teatro, Boa fala sobre como o exercício teatral é capaz de criar situações de luta, resistência e autocrítica. Dá o exemplo de um prefeito que fez questão de participar e atuar como si próprio, agindo como agia em seu cargo, para poder melhor justificar suas ações diante da população local.
“O prefeito era perfeitamente consciente do que fazia… Como sabia o que fazia e como fazia, esse opressor não poderia ser transformado, nem podia transformar a si mesmo, naquilo que não era nem queria ser: tinha consciência do mal que causava e dos benefícios que, disso, tirava. Trabalhar com esse homem seria tempo perdido, inútil temeridade. Lutar contra ele, sim, valia a pena… e ele foi derrotado nas eleições seguintes.”
O teatro é um potencial de transformação, ainda que nem sempre se realize. Como vemos hoje no Brasil, há quem se imobilize e aceita até os descalabros mais absurdos, grupos de pessoas cúmplices que Augusto Boal também considera imunes aos efeitos do Teatro do Oprimido.
“Exemplo disso é aquele policial que me quebrou o joelho em rotineira sessão de tortura, em 1971, e me pedia perdão toda vez que ligava a eletricidade: “Você me desculpe, eu não tenho nada contra você, respeito muito, um verdadeiro artista, mas esta é a minha função, tenho mulher e filhos, preciso do meu salário, tenho que trabalhar e… você caiu no meu horário…
[...]
Gente como essa - ridículos êmulos de Pinochet e outros bandidos - não pode ser absolvida com o argumento de que é produto de uma sociedade, pois foram criados em sociedades que também produziram pessoas éticas. Nenhuma sociedade fabrica, “em série”, os seus cidadãos - somos todos responsáveis por nossos atos.”
Lembro de uma compreensão que tive sobre a impossibilidade do perdão em determinadas situações, e a posição de Augusto Boal nos idos anos 70 me mostrou que estou menos sozinho, mas também que muitos horrores não ficaram no passado.
“Não podemos conceder perdão e oferecer nossa amizade a quem escolheu o proveito próprio às custas da infelicidade dos outros, e decidiu gozar a própria vida ao custo da morte alheia. Aqueles que querem a todos perdoar, “ver os dois lados da questão” ou “ver a questão de todos os lados”, aqueles que tentam justificar as razões dos opressores, são os imobilistas do mundo.”
O que quer, então, o Teatro do Oprimido?
“Nós, do Teatro do Oprimido, ao contrário, queremos transformá-lo, queremos que mude sempre em direção a uma sociedade sem opressão. É isto que significa humanizar a humanidade: queremos que o “homem deixe de ser o lobo do homem”, como dizia um poeta.”
O que o Teatro do Oprimido demanda?
“Fazer Teatro do Oprimido já é o resultado de uma escolha ética, já significa tomar o partido dos oprimidos. Tentar transformá-lo em mero entretenimento sem consequências seria desconhecê-lo; transformá-lo em arma de opressão seria traí-lo.”
Ser artista não é exigência do Teatro do Oprimido.
“Nossa tomada de posição teórica e nossas ações concretas devem acontecer não porque sejamos artistas, mas porque somos cidadãos. Fôssemos veterinários, dentistas, pedreiros, filósofos, bailarinos, professores, jogadores de futebol ou lutadores de judô - qualquer que seja a nossa profissão -, temos a obrigação cidadã de nos colocarmos ao lado dos humilhados e dos ofendidos.”
Mas o Teatro do Oprimido não é um espaço onde a opressão não se transforma. Em alguns casos é impossível, mas nem todos, há possibilidades para a magnificação e o entendimento, enfim, há oportunidades para quem estiver aberto à autocrítica.
“Existem também os opressores não antagônicos, com os quais o cuidadoso diálogo é possível e as transformações relacionais também.
[...]
No Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro já trabalhamos com homens que batiam em suas mulheres. A vergonha que alguns sentiam, ao ver-se em cena, já era o início do caminho da transformação possível. É pouco? Sim, muito pouco, mas a direção da caminhada é mais importante do que o tamanho do passo.”
Boal retornou ao Brasil em 1986, morando no Rio de Janeiro onde nasceu. Em 1992 foi eleito vereador e desenvolveu ainda o Teatro Legislativo. Em 2009, ano de sua morte, Augusto Boal recebeu da Unesco o título de “Embaixador do Teatro Mundial”.
Referência: BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas: Augusto Boal. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ISBN 978-85-405-0474-5.
