Vamos odiar o Vale do Silício juntos? Evgeny Morozov e a armadilha da linguagem digital

Não seria ótimo que um dia, diante da afirmativa de que a missão do Google é “organizar as informações do mundo e torná-las acessíveis e úteis para todos”, pudéssemos ler nas entrelinhas e compreender o seu verdadeiro significado, ou seja, “monetizar toda a informação do mundo e torná-la universalmente inacessível e lucrativa”? - Evgeny Morozov
Após uma onda de processos eleitorais deslegitimados pelo uso massificado e espúrio das redes sociais, o mundo parece acordar de sua lua de mel com o Vale do Silício. Um despertar tardio, pelo qual já pagamos absurdamente caro, e, ao que tudo indica, ainda não será o bastante para lidar com as gigantes de tecnologia e o poder que seus produtos angariaram nesse período.
É sobre esse cenário de paralisia política e dependência tecnológica que escreve Evgeny Morozov em seu livro “Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política”.
No ensaio “Por que estamos autorizados a odiar o Vale do Silício?” Morozov expõe a raiz do problema buscando na linguagem e em suas armadilhas um dos entraves para o debate.
Enquanto nossa crítica se limitar ao plano da tecnologia e da informação - um nível frequentemente descrito pelo termo “digital”, essa palavra gasta, péssima e sem sentido -, o Vale do Silício continuará a ser visto como uma indústria extraordinária e singular. Quando os ativistas da alimentação pressionam as grandes indústrias alimentícias e acusam as empresas de acrescentar sal e gordura demais aos salgadinhos a fim de estimular o consumo de seus produtos, ninguém se atreve a acusá-los de serem contrários à ciência. No entanto, críticas semelhantes ao Facebook ou Twitter - por exemplo, a de que projetaram os seus serviços de maneira a estimular nossas ansiedades e a nos levar a sempre clicar no botão “atualizar” para obter a publicação mais recente - evocam quase imediatamente acusações de que somos tecnofóbicos e luditas.
Há um motivo simples para o debate digital parecer tão vazio e inócuo: definido como “digital” em vez de “político” e “econômico”, desde o princípio o debate é conduzido em termos favoráveis às empresas de tecnologia. Sem o conhecimento da maioria de nós, a natureza aparentemente excepcional das mercadorias em questão - desde a “informação”, passando pelas “redes”, até a “internet” - está codificada em nossa linguagem.
Como toda desconstrução, é impossível começar sem saber qual é seu objeto, então, nesse caso, Morozov especifica alguns traços comuns desse discurso ideológico.
Como identificar “o debate digital”? Basta reconhecer os argumentos que remetem à essência das coisas - da tecnologia, da informação, do conhecimento e, claro, da própria internet.
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Nesse domínio, somos solicitados a defender o bem-estar de divindades digitais fantasmagóricas que funcionam como prepostos convenientes dos interesses empresariais. Por que qualquer coisa que poderia “quebrar a internet” também quebraria o Google? Isso não pode ser uma coincidência, pode?
Se esse é o debate que se disfarça, por trás dele se escondem não os aplicativos e redes digitais, mas gigantes industriais como tantos outros que já olhamos com ódio. Entretanto, qual a diferença real entre a tecnologia e as empresas que a utilizam?
“Tudo bem não ser um ludita, mas ainda assim odiar o Vale do Silício?” é um pergunta bem melhor, pois o verdadeiro inimigo não é a tecnologia, mas o atual regime político - uma combinação selvagem de complexo militar-industrial e dos descontrolados setores banqueiro e publicitário…
Com tanto tempo perdido e contra um grupo do qual dependemos mas também pelo qual somos explorados, por onde começar a pensar e desmontar esse complexo supranacional?
Como primeiro passo, deveríamos nos apropriar da linguagem banal, mas extremamente eficaz, que eles usam. Depois, deveríamos nos apropriar de sua história imperfeita. E, como terceiro passo, reintroduzir a política e a economia nessa discussão. Vamos enterrar de vez o “debate digital” - juntamente com o excesso de mediocridade intelectual por ele gerado.
Esse é apenas um dos diversos texto inclusos no livro Big Tech, um livro que se debruça sobre os campos da análise, história e futuro das empresas de tecnologia e também sua relação com o ambiente político e social com os quais se relacionam.
