Crueza e seriedade: O necessário discurso de Raduan Nassar durante o Prêmio Camões

Crueza e seriedade: O necessário discurso de Raduan Nassar durante o Prêmio Camões

“Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.” – Raduan Nassar

 

Escritor de poucos títulos, Raduan Nassar angariou para si elogios e prêmios que traduzem a força poética e a linguagem singular que desenvolveu durante sua carreira literária, encerrada em 1984. Desde então recolheu-se em seu sítio no interior de São Paulo, porém seus livros continuam trazendo seu nome para os holofotes da cena literária.

Raduan Nassar

Na comemoração dos 30 anos da editora Companhia das Letras foi anunciada a publicação de sua obra completa, num momento em que o autor ganha tração fora do país após ficar entre os semifinalistas do Prêmio Man Booker, um dos mais prestigiados do planeta. Raduan Nassar, considerado pela The New Yorker como o maior escritor brasileiro, foi traduzido para o inglês, espanhol, francês e alemão, além de ter seus livros “Um copo de cólera” e “Lavoura Arcaica” adaptados para o cinema.

A coroação final de sua obra foi o Prêmio Camões de 2016, o maior prêmio literário de língua portuguesa que em anos anteriores premiou nomes como Mia Couto (2013), Ferreira Gullar (2010), Lygia Fagundes Telles (2005) e João Ubaldo Ribeiro (2008).

Em seu discurso de premiação Raduan Nassar deu uma prova de lucidez e seriedade ao abandonar o protocolo e ao invés de discursar exclusivamente sobre a homenagem que lhe prestavam colocou à frente a situação política do Brasil. Discursou, para desgosto do Ministro da Cultura, Roberto Freire, de forma contundente e lúcida com o golpe e o Estado de exceção sob os quais vivemos.

Abaixo, o discurso completo de Raduan Nassar no Prêmio Camões 2016:

Excelentíssimo Senhor Embaixador de Portugal, Dr. Jorge Cabral.

Senhor Dr. Roberto Freire, Ministro da Cultura do governo em exercício.

Senhora Helena Severo, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.

Professor Jorge Schwartz, Diretor do Museu Lasar Segall.

Saudações a todos os convidados.

Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.

Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.

Portanto, Sr. Embaixador, muito obrigado a Portugal.

Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.

Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes.

Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.

Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.

Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.

Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas.

É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.

O golpe estava consumado!

Não há como ficar calado.

Obrigado
— Raduan Nassar

Deixar de lado as vaidades e o conforto do discurso fácil é uma grandeza que soma ainda mais à já estabelecida e reconhecida qualidade de sua atuação como escritor. Ao usar todo o peso de sua figura para apontar o dedo contra os desmandos desse país, Raduan Nassar fala por todos nós e contempla cada um dos que já teve a oportunidade de ser tocado por sua literatura.