5 trechos: Com os meus olhos de cão, Hilda Hilst

Múltiplos narradores, diálogos entremeados com divagações filosóficas e um mergulho na mentalidade do personagem principal. "Com meus olhos de cão" é uma das complexas e ricas obras em prosa escritas por Hilda Hilst.
1
“Esquecer os “consideremos” “por conseguinte” “suponhamos” “daEi se deduz” e tentar a incoerência de muitas palavras, de início soletrar algumas sigilosamente junto ao coração, por exemplo Vida, Entendimento, e se a pergunta vier, despejar o tambor de latão em cima daquele que pergunta, morreu é? morreu de letras. Como assim Ora, perguntou algo a alguém matemático e o cara que não falava há anos só número, sabe, verbalizou hemorragicamente. Quê? Isso mesmo, golfadas de palavras. O outro não aguentou. O cadáver mais letrado que já vi, uma beleza, cara, escurinho de letras.”
2
“Vida tão colorida, mãe, dá medo essas cores da vida, eu disse de manhãzinha olho o rosa-roxo do capim. Ela me olhou como quem entendeu. Estranho essas mulheres delicadas que se casam com homens crus, o sangue sempre à mostra, grosseria e rudeza, elas gostam é? Mas por que se tornam mais tarde tão secas, mudas, muda minha mãe como eu mesmo mudo, piedade e estupor e de tanto e porisso mesmo mudo? Ele: tem gente que pensa que o garoto é mudo. A mãe: gente boba. Ele: uns taponas na boca e ele vai abri-la, vai ver. Mudo? A mãe punha-se de pé, olhava o pai de frente. Ele tossia, disfarçava. Depois ia andando: filhos, que maçada.”
3
“Perto de algum muro encostar a carcaça e aí vem alguém: tá com fome, moço? Digo que sim e vem o pedaço de pão (sem manteiga) e o prato de comida. Ou não vem? Ou vem aquela frase: parece moço ainda, não pode trabalhar? Estertoro, digo que não, idiota, não vou trabalhar nunca mais, porque senti aquilo e compreendi naquele instante aquilo, ouviu? Chamam a polícia. Será? Só porque me encosto no muro de alguém e estertoro? O da cruz, por muito menos escorraçaram-no. Só pra limpar o suor. Ganhar fôlego. Senti o não sentível, compreendi o não equacionável.”
4
“Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre a mesa e dissessem a mim, a mim que sou cego: isto é aquilo que vê. Esta é a matéria que vê. Toco os dois olhos em cima da mesa. Lisos, tépidos ainda (arrancaram há pouco), gelatinosos. Mas não vejo o ver. Assim é o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito.”
5
“Um coração minúsculo tentanto
Escapar de si mesmo
Dilatando-se
À procura de puro entendimento”
Referẽncia: Com meus olhos de cão / HIlda HIlst - 2a edição - São Paulo: Globo, 2006.

Felipe V. Almeida