Cartas de Caio F. Abreu a Hilda Hilst: angústia, fama e um encontro com Clarice Lispector
“Digo a todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano procurando um jeito de viver.”
Parece muito sonhar com conversas e vivências compartilhadas entres nossos autores, artistas, inspirações, aquele tipo de interação que sabemos, encontra caminho até suas obras, mas que também se perde no tempo. Felizmente, cartas, entrevistas, filmagens apaziguam um pouco dessa saudade pelo que não vivemos. Nessa linha encontrei a pequena publicação “Três vezes Hilda” da Companhia das Letras que gira em torno da memória de Hilda Hilst e sua amizade com o escritor Caio Fernando Abreu.
As cartas que Caio F. Abreu manda a Hilda Hilst têm sempre um pedido de retorno, uma ponta de insatisfação com o que ele considera o silêncio de Hilda, entretanto, há também momentos de quase terapia onde Caio se abre com a amiga e elabora suas próprias experiências num impulso que parece tanto um pedido de compreensão quanto uma tentativa de lidar consigo mesmo.
“Hildinha, se você soubesse como ando escuro, como ando perdido, como me distanciei de mim e das coisas em que acreditava: tenho participado de festas louquíssimas, na base da maconha, da nudez, jogo da verdade, bacanais, surubas. Por favor, queria tanto que me compreendesses. Ando muito sozinho, nessas festas se reúnem artistas plásticos, atores, atrizes, escritores - todos jovens, perdidos, desesperados - é uma coisa terrível. Chega a ser comovente a maneira errada como eles tentam se convencer que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com aquele brilho superficial e ridículo. E em cada fim de noite me sinto um lixo. Há tempos estou vivendo uma estória-de-amor-impossível que rebenta a saúde: sei que não dá pé de jeito nenhum e não consigo me libertar, esquecer - estou completamente fixado nessa pessoa, vivo todas as horas do dia em função de encontrá-la, à noite. É insuportável.”
Certas passagens das cartas de Caio Fernando Abreu não destoariam se estivessem em um diário, um sinal da intimidade que o autor tinha com Hilda Hilst e também da certeza de que suas preocupações e dificuldades também ressoavam com a amiga.
“Vivi a experiência de uma tarde de autógrafos: me senti tolhido, constrangido, inibido. A imprensa anda me badalando muito. Mas descobri finalmente como tudo isso quer dizer pouco: o bom no escrever é o momento da criação, da vibração, da comunicação com incognoscível que nos dita as coisas a serem escritas - o resto é lixo. A inveja é um fato: certas pessoas têm me agredido muito, na faculdade, na rua, geralmente intelectuais no mau sentido, frustrados e medíocres. Tenho horror desses rebucetes, rodinhas e frescuras literárias: procuro ficar na minha, sempre. Digo a todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano procurando um jeito de viver.”
Em 29 de Dezembro de 1970, Caio Fernando Abreu relata a Hilda Hilst seu encontro com Clarice Lispector em uma sessão de autógrafos da escritora e como Clarice o marcou profundamente. Através da descrição que Caio faz de Clarice vislumbramos como o autor lia a obra de Hilda Hilst e até algo da possível influência que tiveram sobre ele.
“Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipacíssima mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto.”
Para Caio, Clarice Lispector é como os livros de Hilda Hilst: linda, profunda, estranha, perigosa. De uma carta basta um detalhe como esse para irmos de uma comunicação qualquer para uma declaração, um documento.
Caio Fernando Abreu que, perseguido pelo DOPS, havia se refugiado na Casa Sol de Hilda Hilst em 1968, enviou em março de 73 uma carta de despedida à amiga, partindo do Brasil sem saber se retornaria.
“As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas, coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A gente vai ficando acuado, medroso, paranoico: eu não quero ficar assim, eu não vou ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. Não tenho grandes ilusões, também não acredito muito que por lá seja o paraíso - mas sei que a barra é bem mais tranquilo e, enfim, vamos ver. Acho que o mundo está aí para ser visto e curtido, antes que acabe. Vou consciência tranquila, sabendo que dentro de todo o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto.”
Podia ter sido escrita hoje, mas essa carta é de 1973. Caio Fernando Abreu retornaria ao Brasil.
“Três vezes Hilda, Biografia, correspondência e poesia” está disponível gratuitamente no Google livros e na plataforma da Amazon.
