Linguagem, obsessão e codificação. Franco Berardi analisa a insurreição em um mundo insensível

“O processo de mudança em curso está voltado para a mudança da conjunção para a conexão como paradigma de troca entre organismos conscientes. O principal fator dessa mudança é a inserção do eletrônico no orgânico...”
Qual o preço de existir online? Com a pandemia a digitalização de nossas vidas avançou aceleradamente, numa fuga até necessária do contato físico e da proximidade real, entretanto, é preciso notar que esse foi um impulso de um cenário que já se estabelecia aos poucos.
Os aplicativos de delivery, entretenimento e de redes sociais são a padronização completa de relações que antes se davam de forma mais ou menos institucionalizada mas fragmentada, regionalizada e dependente de outros fatores. Das dancinhas e músicas repetidas ao dinheiro virtualizado, o consumo é uniforme, impessoal e igualitário apenas na medida do poder econômico de cada um.
No livro Asfixia, publicado pela editora Ubu, o filósofo italiano Franco Berardi mergulha nessa vertigem da linguagem e da interação digital e analisa sob a égide dos grandes agentes econômicos e dos movimentos sociais surgidos recentemente a mudança para um mundo virtualizado, conectado e insensível.
“Essa mudança envolve uma mutação do organismo consciente: para que o organismo conectivo possa ser compatibilizado com a máquina conectiva, seus sistemas cognitivos devem ser reformatados. Organismos conscientes e sensoriais são então submetidos a um processo de mutação que se relaciona às faculdades da atenção, do processamento, da tomada de decisões e da expressão. Para que a adesão à tecnologia recombinante da rede seja possível, os fluxos informativos precisam ser acelerados e a capacidade conectiva tem que ser reforçada.”
O escritor bielorusso Euvgeny Morozov alerta para a tentativa de controle e organização dos dados por parte das gigantes da tecnologia, um processo que para ele se trata muito mais de controle e exclusão do que uma uniformização em busca de acessibilidade e inclusão.
Nesse sentido Berardi aponta para um outro lado da moeda, a uniformização das interações e dos comportamentos para que não só os dados, mas também os usuários se encaixem sob os sistemas estabelecidos por essas empresas. A intenção de conectar leva a uma necessidade de uniformizar, de traduzir o complexo em uma linguagem simples, digital e comum aos mais diversos contextos e usuários.
“Menos do que uma fusão de segmentos, a conexão leva a um simples efeito de funcionalidade maquínica. A funcionalidade dos materiais que se conectam está implícita na ideia de conexão como um modelo funcional que os prepara para a interoperabilidade e para o uso de uma interface. Para que a conexão seja possível, os segmentos devem ser linguisticamente compatíveis. Conexões exigem um processo prévio em que os elementos que precisam ser conectados serão compatibilizados. De fato, a rede digital se expande por meio da redução progressiva de um número cada vez maior de elementos a um mesmo formato, a um mesmo padrão e a um código que sejam capazes de compatibilizar elementos diferentes.
O processo de mudança em curso está voltado para a mudança da conjunção para a conexão como paradigma de troca entre organismos conscientes. O principal fator dessa mudança é a inserção do eletrônico no orgânico - a proliferação de dispositivos artificiais no universo orgânico, no corpo, na comunicação e na sociedade. Mas o efeito dessa mudança é a transformação da relação entre a consciência e sensibilidade e uma dessensibilização na troca de signos.”
Berardi divide as formas de interação entre conjunção e conexão e os define da seguinte maneira:
“A conjunção implica um critério semântico de interpretação. O outro, aquele que entra em conjunção comigo, envia signos cujo sentido devo interpretar, se necessário, por meio da leitura de suas intenções, do contexto, das nuances e do não dito.
A conexão exige um critério de interpretação puramente sintático. O intérprete deve reconhecer uma sequência e ser capaz de realizar a operação prescrita pela “sintaxe geral” (ou sistema operacional); não pode haver margem para a ambiguidade na troca de mensagens, e a intenção não pode ser manifestada com nuances. A tradução gradual de diferenças semânticas para diferenças sintáticas é o processo que levou o racionalismo científico moderno à cibernética e que acabou por tornar possível a criação da rede digital.”
A teórica Anne-Marie Willis propõe justamente a ideia de que o design faz design, como uma cascata de influências que em última instância retorna até nós mesmos. O mundo que criamos nos recria a partir das relações que desenvolvemos com o mesmo, um circuito que se retroalimenta.
Para Franco Berardi a codificação de “inputs” e “outputs” padroniza e acelera, mas traz seus problemas a partir do momento em que nossa vida começa a se fragmentar em torno de substituições cada vez maiores daquilo que antes vinha com nuances e pontos de interrogação.
“A sensibilidade - isto é, a capacidade de interpretar e entender o que não pode ser expresso em signos verbais ou digitais - pode ser inútil e até mesmo perigosa em uma sistema integrado de natureza conectiva. Ela desacelera processos de interpretação e torna a decodificação aleatória, ambígua e incerta, e, assim, reduz a eficiência competitiva do agente semiótico.”
Berardi busca em Félix Guattari o conceito de ritornelo para indicar uma possível forma de resistir ao esvaziamento da linguagem e a codificação simplificadora de nossas vidas.
“O ritornelo é um ritual obsessivo que permite que o indivíduo - o organismo consciente em constante variação - encontre pontos, se territorialize e se represente em relação ao mundo circundante. O ritornelo é a modalidade de semiotização que permite que o indivíduo (um grupo, uma pessoa, uma noção, uma subcultura, um movimento) receba e projete o mundo de acordo com formatos reproduzíveis e comunicáveis.
Para que os universos cósmico, social e molecular possam ser filtrados pela percepção individual, é necessário que filtros semióticos atuem - filtros que podem ser chamados de ritornelos.”
Esse filtro semântico baseado no ritornelo culmina no mantra, uma possibilidade de conjunção através da proximidade não só de filtros semânticos mas também de “obsessões”.
Do mantra à insurreição
“A insurreição contra o capitalismo financeirizado que começou nos países europeus em 2011 pode ser vista como um mantra, como uma tentativa de reativação do corpo conjuntivo, como uma forma de terapia aplicada às patologias que atacam a empatia e que atravessam a pele e a alma sociais.”
E a violência dos insurgentes?
“A insurreição muitas vezes dará lugar ao fenômeno da violência psicótica. Não devemos classificar esses atos como criminosos. Por tempo demais a ditadura financeira esmagou o corpo social, e o cinismo da classe dominante se tornou repugnante.”
O que será a insurreição?
“A insurreição não é uma forma de julgamento, mas uma forma de cura. E essa cura é possível graças a um mantra que se eleva, cada vez mais alto, conforme a solidariedade ressurge na vida diária.
É inútil fazer sermões contra aqueles que só são capazes de expressar sua revolta por meio da violência. O médico não julga, mas cura, e a tarefa do movimento é agir como médico, não como juiz.
O que temos que conseguir comunicar aos revoltados, aos saqueadores, ao black blocs e aos casseurs é uma verdade que precisamos construir juntos e que devemos espalhar: a de um mantra coletivo entoado por milhões de pessoas derrubará as muralhas de Jericó com muito mais eficiência do que uma picareta ou uma bomba.”
Deleuze e Guattari falavam das possibilidades revolucionárias de uma “literatura menor”, onde “ “menor” não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que se chama grande (ou estabelecida).” e Franco Berardi volta ao ritornelo de Guattari para propor o mantra, uma possibilidade revolucionária menor dentro de um cenário maior. Como se em um ponto focal pudesse surgir uma semente, uma pequena voz com novas possibilidades.
