Ser e design: Anne-Marie Willis sobre a via de mão dupla do que criamos

"...fazemos o design do nosso mundo, enquanto nosso mundo age de volta sobre nós e nosso próprio design." - Anne-Marie Willis
Com o melhoramento das tecnologias de realidade virtual o mundo tem se aberto a novas possibilidades criativas que vão além da ideia de acessos intermediados por computadores, porque agora podemos entrar nesses ambientes na medida em que é possível conectar e simular uma realidade alternativa. Entretanto, qual o efeito de vivermos, mesmo que temporariamente, em mundos artificiais? Ou melhor, o que é o artificial? E como novas tecnologias podem nos afetar? Já existem muitos pensadores trabalhando em cima desses questionamentos mas aqui vou apresentar uma área que estuda o design de forma mais ampla, a área do Design Ontológico.
O artigo “Ontological designing – Laying the ground” publicado na revista Design Philosophy Papers em Junho de 2006 - nos dá uma ideia do que essa linha de pensamento estuda. Escrito por Anne-Marie Willis — que tem diversos artigos científicos e livros publicados que abrangem áreas como arquitetura, design e teoria cultural — o artigo é praticamente uma introdução ao conceito. Willis começa explicando do que trata quando diz Ontological designing:
“Simplificando, o Design Ontológico é uma forma de caracterizar a relação entre seres humanos e mundos-da-vida¹.”
No entanto, para ela não se trata apenas de dizer que “somos condicionados por nosso ambiente” ou “que somos moldados pelas culturas em que nascemos”, pois:
“O Design Ontológico é então (i) uma hermenêutica interessada com a natureza e a agência do design... (ii) um argumento para formas específicas de lidar com a atividade do design, especialmente no contexto contemporâneo de insustentabilidade.”
Como teoria, ela escreve, o design ontológico postula:
“Que design é algo muito mais difundido e profundo do que é geralmente reconhecido por designers, teóricos da cultura, filósofos e leigos.
Que a atividade do design é fundamental para o ser humano – nós fazemos design, ou seja, nós deliberamos, planejamos e esquematizamos de maneiras que prefiguram nossas ações e criações – e por sua vez a nossa própria atividade de design, juntamente com o design que criamos, agem sobre nós alterando nosso design (através de nossas interações com as especificidades estruturais e materiais de nossos meios);
Que isso culmina em um movimento duplo – nós fazemos o design de nosso mundo, enquanto nosso mundo age de volta sobre nós e nosso próprio design.
Ela explica esse duplo movimento de design usando o exemplo da linguagem em um processo pelo qual entendemos o todo através de suas partes e então estas através do todo, ou seja, um círculo hermenêutico:
“É útil pensar o círculo hermenêutico em três movimentos, usando o exemplo da língua. Apesar de não conseguirmos pensar fora da língua, isso não significa que somos totalmente programados: (i) nós nascemos e nos tornamos humanos na língua; (ii) nos apropriamos dela, a alteramos, talvez usemos palavras em combinações que não foram utilizadas anteriomente e encontremos situações que requeiram novas palavras; (iii) assim, ao nos apropriarmos da língua nós também a alteramos e a língua-alterada por sua vez age de volta sobre nós, usuários da língua.”
O círculo hermenêutico implica uma alteração tanto do ser quanto daquilo que é resultado do design em constante funcionamento. Willis indica ainda regiões onde essa forma de Design pode condicionar o ser:
“O Design Ontológico enquanto condição de ser pode ser visto como ocupando três regiões interconectadas:
Conforme se aplica convencionalmente às coisas consideradas produtos de design – por exemplo, prédios e objetos manufaturados.
Se extendendo a partir disso há o design ontológico das infraestruturas materiais e imaterias, ou seja, de sistemas de gerenciamento, tecnologia da informação, sistemas de comunicação.
E então há o design ontológico dos sistemas de pensamentos, dos hábitos da mente.”
Para Willis, dentro dessas regiões os exemplos mais palpáveis de Design Ontológico estão nos equipamentos e na tecnologia, onde o estudo deve associar tanto o aspecto material quanto imaterial do design em questão:
“Entretanto, isso acarreta riscos, particularmente quando o caráter material do equipamento é deixado para trás para considerar o design ontológico do não-material, por exemplo, dos sistemas de organização ou métodos de pensamento... O risco é o de perder a especificidade de forma que o design ontológico poderia ser visto como equivalente a “determinismo ambiental”, não possuindo atuação alguma além de certa “influência”... Ainda assim, fazer uma distinção entre material e não-material para o design ontológico é, em parte, perder o foco – porque ambos estão presentes na maioria das situações – logo, os efeitos de design de um sistema administrativo são inseparáveis da parte material de sua infraestrutura de TI, formulários, arquivos, estações e hierarquias de trabalho, fluxos de papelada e informação eletrônica.”
Willis então discute a relevância do designer e das etapas do círculo hermenêutico:
“Quando digo “o design faz design” também se inclui os efeitos de design do design criado pelos designers (objetos, espaços, sistemas, infraestruturas). O mais significante aqui é que todos esses designs são da mesma ordem. Ou seja, nenhuma distinção está sendo feita acerca da relativa significância ou natureza das determinações; nenhum objeto, processo ou agente detém a primazia. Tradicionalmente a atuação tem sido colocada como sendo do designer – pressupondo que as intenções do designer estão embutidas no objeto de design que por sua vez leva o usuário do objeto a fazer coisas de determinadas maneiras. Porém o problema aqui é um modelo falho de causalidade baseado em uma temporalidade linear, na qual assume-se que as coisas podem ser traçadas até suas origens no passado – não há nenhuma necessidade especial dessa suposição quando tentamos explicar fenomenologicamente o processo de design que está acontecendo em certa situação. O fato de que equipes de designers trabalharam na configuração da tela e do teclado que uso agora não pode realmente me ajudar a entender que o meu uso desse equipamento é ao mesmo tempo esse equipamento gerando o design do que estou fazendo. Uma vez que a confortável ficção de um agente humano original se dissipa, o poder inscritivo do design é revelado e se torna claro.”
No artigo ainda é possível entender como Anne-Marie Willis posiciona seu pensamento tendo Heidegger como ponto de partida, em especial no que tange o círculo hermenêutico. Essa é uma leitura importante nesse momento de constantes inovações e alterações tanto do espaço físico quanto do virtual, mudanças que podem nos afetar muito além do que parece à primeira vista. O poder de mudanças tão amplas também pode ser visto no ensaio de James Joyce acerca dos efeitos do renascimento.
¹ - Do alemão: Lebenswelt e em inglês: Lifeworld. Termo associado à fenomenologia de Husserl, mas também encontrado em Habermas e Heidegger. Para mais: http://www.onto.net.br/index.php?title=Mundo-da-vida
Complemente essa leitura com esse vídeo instigante do Jason Silva sobre o Design Ontológico:
