Meditações, livro X. Expectativas e legado: a vida e a morte de um estoico.

Ó, alma minha, você nunca será boa e sincera? Unida e acessível por completo, mais visível ao observador do que o corpo em carne e osso que te abrange? Você nunca experimentará a doçura de um coração amante e afeiçoado? Será que nunca se sentirá completa e livre de necessidades, nada desejando, não ansiando por nenhuma criatura ou coisa que sirva a seus prazeres, nenhum prolongamento para aproveitar os dias, nenhum lugar, país, clima ou companhia humana agradável? Quando você se contentará com seu estado atual, feliz em tudo, persuadida de que todas as coisas são suas, de que tudo vem dos deuses e de que tudo está e estará bem com você enquanto for prazeroso e ordenado por eles para a segurança e bem estar do Todo perfeito – tão bom, tão justo, tão bonito – que dá vida a todas as coisas, sustentando e envolvendo-as até que, à sua dissolução, as reúne em si para que outras de seu tipo possam ser geradas? Algum dia estará apta a tal sociedade com deuses e homens sem ter nenhuma sílaba de reclamação contra eles e nenhuma sílaba de reprovação vinda deles?
Atente-se para o que sua natureza particular requer de você enquanto alguém completamente sob o governo da grande Natureza. Faça-o e aceite-o, dado que nunca oferecerá riscos à sua natureza física. Porém também dê atenção às necessidades daquela natureza física e assinta a todas elas, a menos que elas ofereçam prejuízos à natureza racional (e por racional implica-se diretamente o social também). Observe estas regras, sem desperdiçar sofrimentos com outras coisas.
O que quer que te aconteça ou a Natureza te preparou para encarar ou não. Se algo desagradável acontece e está sob seus poderes de resistir, não ressinta-se, mas suporte isso como ela te permitiu fazer. Caso exceda esse poderes, ainda assim não dê espaço para ressentimento, já que a vitória sobre ti dará fim à própria existência. Lembre-se de que na verdade a Natureza te deu a habilidade de suportar qualquer coisa que seu julgamento consiga declarar suportável e tolerável ao considerar fazer isso como sendo um dever de seu interesse.
Se um homem comete um deslize, advirta-o gentilmente e mostre a ele o erro. Se você falhar em convencê-lo, culpe-se, ou não culpe ninguém.
O que quer que aconteça a você foi preparado para você desde o início dos tempos. No entrelaçamento da tapeçaria das causas, o fio de nosso ser foi entrelaçado desde sempre com aquele incidente em particular.
Não importa se o mundo é uma confusão de átomos ou um desenvolvimento natural, desde que minha convicção primária seja a de que sou parte de um Todo que está sob o governo da Natureza. E a segunda, de que uma ligação de parentesco exise entre eu e todas as outras partes similares. Se eu tiver essas duas convicções em mente, então em primeiro lugar, sendo uma parte, não me sentirei ofendido por qualquer dispensa dada a mim pelo Todo, porque nada que seja benéfico para o todo pode ser danoso para uma parte e nesse caso não há contido nesse Todo que não seja benéfico a ele mesmo. (O mesmo, de fato, pode ser dito de qualquer organismo natural, porém a natureza do universo tem uma distinção a mais que é a de que não existe causa fora de si que poderia compeli-la a produzir qualquer coisa de danoso a si mesma). Então lembrando que sou parte de tal Todo, devo aceitar alegremente a minha fortuna. Em segundo lugar, dado que existe essa ligação de parentesco entre eu e as outras partes, não devo fazer nada que possa injuriar a comunidade, e manter essas partes sempre em vista, direcionando todo impulso no sentido de seu bem e longe de qualquer coisa que vá de encontro a elas. Assim fazendo, não poderei encontrar outra coisa que não a corrente de minha vida fluindo serenamente, tão serenamente quanto podemos imaginar a de um homem público cujas ações são constantemente úteis para seus concidadãos e que está pronto para dar as boas vindas a qualquer tarefa que sua cidade lhe designar.
Qualquer parte do Todo – pelas quais quero dizer qualquer coisa naturalmente compreendida no universo – deve decair com o tempo ou, em termos mais precisos, deve sofrer uma mudança de forma. Se por sua natureza essa mudança, além de ser inevitável, fosse um verdadeiro mal para elas, o tranquilo trabalho do Todo nunca poderia avançar, pois suas partes sempre seguem em direção a uma mudança de forma ou outra e são todas constitutivamente passíveis de decair em suas respectivas maneiras. Então a Natureza, deliberadamente quis infligir dano às coisas que fazem parte de si, fazendo-as não apenas passíveis de mal mas inescapavelmente condenadas a ele ou pode ser que tais coisas aconteçam sem seu conhecimento? Nenhuma das duas suposições merece crédito. Mesmo supondo que não levemos em conta a Natureza, ainda é absurdo dizer que essa mutabilidade das partes do Todo é normal se ao mesmo tempo nos sentimos tão chocados ou ressentidos com isso como se fosse algum tipo de ocorrência sobrenatural. Tanto mais que o que todas as partes estão fazendo é meramente se dissolverem de volta nos constituintes de sua composição original. Pois se a dissolução não é simplesmente uma dispersão dos elementos dos quais sou composto, deve ser uma mudança das partículas brutas em forma-terrena e das espirituais em forma-aérea, para que todas possam ser reabsorvidas na Razão universal (Não importando se isso é serem periodicamente consumidas pelo fogo ou serem mantidas perpetuamente se renovando através de eternos ciclos de mudança). Entretanto, veja que essas partículas brutas e espirituais, não devem ser confundidas com as que recebemos ao nascer, dado que toda nossa presente estrutura derivou seu incremento de carnes e ar que consumimos ainda ontem ou anteontem. O que sofrerá essas mudanças não é algo que nossas mães agregaram originalmente, senão algo que viemos recebendo desde então. (Mesmo se admitirmos que o nascimento, de fato, nos entrelaça em grande medida com essas partículas intrínsecas, não penso que isso afete o que eu disse).
Se você reivindica para si mesmo epítetos como bom, modesto, verdadeiro, possuidor de uma mente superior, serena e direita, tome cuidado para não desmenti-los e se você acabar por perdê-los nem perca seu tempo tentando reconquistá-los. Porém, lembre-se de que uma mente serena deve lhe sugerir uma consideração crítica de cada detalhe em sua especificidade e uma atenção vigilante a isso: mente direita é aceitar de bom grado tudo que a natureza lhe reserva; mente serena é elevar o intelecto acima dos afazeres carnais, sejam tranquilos ou extenuantes, e acima do orgulho, morte ou quaisquer outras distrações. Viva à altura dessas designações – porém sem desejar que os outros te rotulem por elas – e você será um homem diferente com uma vida nova. Seguir em seu presente estado, continuando a ser ferido e maculado por uma existência como essa é o comportamento de um tolo de coração fraco, isso cheira ao soldado que foi mutilado pelas bestas na arena e, coberto de sangue e ferimentos, ainda implora para viver até o dia seguinte quando apenas será jogado novamente, machucado e tudo, às mesmas presas e garras. Então suba nessa pequena jangada de atributos e se puder controlá-la, fique lá como se fosse transportado para as Ilhas Afortunadas. Porém caso sinta-se à deriva e incapaz de se manter na rota, crie coragem e vá para algum porto quieto onde você poderá dar conta de si ou até mesmo dar adeus à vida de todo, não de forma afetada, mas de maneira simples, livre e discreta, tendo ao menos esse sucesso em vida para seu crédito, uma partida decorosa. Para manter esses atributos sempre em mente, ajudará muito não esquecer os deuses. Lembrar que tudo o que desejam não é para ser ignorado, mas que tudo que possui razão deve se tornar como eles. E também lembrar que uma figueira é aquela que faz o trabalho de uma figueira, um cão o que faz o de um cão, uma abelha o da abelha – e um homem é aquele que faz o trabalho de um homem.
Diariamente a tolice, o desentendimento, a timidez, a indolência e a servilidade que o cercam vão conspirar para apagar de sua mente aquelas máximas divinas que são apreendidas de modo não filosófico e que se abandona com tão poucos cuidados. O que o dever requer de você é que observe cada pequena coisa e faça cada ação de forma que, enquanto as demandas práticas da situação são completamente claras, os poderes do pensamento estejam, ao mesmo tempo, completamente exercitados. E também manter (reservadamente, embora sem perder de vista) a autoconfiança de quem domina todo detalhe relevante. Você nunca vai alcançar a felicidade de integridade e dignidade reais? De um entendimento que compreenda o mais profundo de cada ser, seu lugar na ordem-mundial, o termo de sua existência natural, a estrutura de sua composição e a quem pertence ou quem tem o poder de conceder ou retirar isso tudo?
Uma aranha se orgulha de pegar uma mosca da mesma forma que certo homem em pegar uma lebre, outro em pescar um arenque e um terceiro em capturar javalis, ursos ou Samartianos. Se você observar os princípios em questão, não passam todos de ladrões?
Crie o hábito de contemplar o processo universal de mudança. Seja assíduo em prestar atenção nisso e eduque-se meticulosamente nesse ramo de estudos. Pois quando o homem entende que a qualquer momento ele pode ter que deixar tudo para trás e abandonar a companhia de seus semelhantes, ele se desprende do corpo e a partir de então dedica-se por inteiro a ser justo em suas ações pessoais e agir de acordo com a Natureza em tudo o mais. Nenhum pensamento é desperdiçado no que os outros podem dizer, pensar ou fazer contra ele. Apenas duas coisas o satisfazendo: justiça em seus afazeres diários e o contentamento com a sorte que o destino lhe reserva. Toda preocupação e distração são deixadas de lado, sua única ambição é seguir os caminhos direitos da lei e, fazendo isso, se tornar um seguidor de Deus.
Qual a necessidade de divagações quando o caminho de seu dever está em vista? Se o caminho for visto sem impedimentos, siga adiante com boa vontade e sem olhar para trás; se não, espere e reúna os melhores conselhos que puder. Se obstáculos surgirem futuramente, avance discretamente até os limites de seus recursos, sempre seguindo para onde a justiça parece apontar. Alcançar a justiça é o auge do sucesso, dado que o erro acontece mais frequentemente nessas situações.
Comece o dia perguntando-se “A conduta justa e correta de outra pessoa pode fazer diferença em mim?” Não pode. Lembre-se de que os homens que estão sempre arrogantemente preparados para louvar ou censurar. Agem da mesma maneira em suas vidas privadas, na cama e no conselho. Relembre as coisas que eles fazem, as coisas que evitam ou que buscam e as bandidagens e depredações que cometem – não necessariamente com mãos e pés, mas com aquilo de mais precioso que possuem, que, caso queira o homem, é a fonte da fé, da modéstia, da verdade, da lei e do bem estar da divindade dentro de si.
Para a Natureza, de onde vêm todas as coisas e para onde tudo retorna, o grito do coração humilde e bem instruído é: “Concedas como quiseres, tomes de volta como desejares” e dito sem heroísmo, pois é pura obediência e boa vontade.
Agora são poucos os anos que te restam. Viva-os, então, como do alto de uma montanha. Se a sorte de um homem é dada nesse ou naquele lugar não tem importância, desde que em todos os lugares ele veja o mundo como uma cidade e ele seu cidadão. Dê aos homens a chance de verem e conhecerem um homem de verdade, vivendo sob a lei da Natureza. Se eles não suportarem a visão, deixe-os acabarem com ele. Melhor assim do que viver como um deles.
Não perca tempo discutindo como deve ser o homem bom. Seja um.
Faça sua mente constantemente habitar em todo o Tempo e em todo o Ser, para assim aprender que cada coisa separada não passa de um grão de areia em comparação ao Ser e é como uma simples volta do parafuso em comparação com o Tempo.
Apreenda a natureza de todas as coisas materiais, observando como cada uma delas está, mesmo agora, sofrendo dissolução e mudança e já está em processo de decaimento ou dispersão ou qualquer outro destino natural que lhe esteja reservado.
Comendo, dormindo, copulando, excretando e coisas do tipo, que horda são! Como são pomposos em sua arrogância, insuportáveis, tirânicos e altivos ao censurar os outros! Um momento atrás, quantos pés não estavam lambendo – e para quais fins! - mais um pouco e eles estarão fazendo tudo de novo.
Para cada homem e cada coisa o que a Natureza faz é para seu próprio bem. Além disso, faz para seu bem no momento preciso em que acontece.
“A Terra está apaixonada pelos aguaceiros que vêm de cima,
E o próprio Céu divino também”Ou seja, o universo ama verdadeiramente a sua tarefa de formar o que quer que esteja por vir e minha resposta para o universo deve ser:
“Como tu amas, também amo eu.” (Não é a mesma noção que está presente no ditado que diz que tais e tais coisas “amam acontecer”?)
Ou você continua vivendo aqui, sob os costumes a que você já se adaptou o bastante ou muda-se para outro lugar de sua livre escolha ou morra, o que significa que seus serviços estão chegando ao fim. Não há outra escolha, então encare com tranquilidade.
Que seja claro para você que a paz campestre sempre pode ser sua, nesse, naquele ou em qualquer outro lugar e que nada é diferente aqui do que seria seja sobre as montanhas, na costa ou onde quer que deseje. Encontrará o mesmo pensamento em Platão, onde ele fala de viver dentro das muralhas da cidade “como a estar ordenhando seus rebanhos em um redil da montanha.”
O que minha razão-mestra é para mim? Como a estou usando nesse momento? Com qual finalidade? Ela está se mostrando insensata? Ela está se mostrando distante dos laços de fraternidade? Ela se tornou tão envolvida e parecida com a carne que passou a refletir seus desvios e vacilações?
Um servo que se liberta de seu mestre é um fugitivo. Para nós, o mestre é a lei e, consequentemente, qualquer infrator da lei é um fugitivo. Entretanto, sofrimento, raiva ou medo são rejeições de algo que - no passado, no presente ou no futuro – foi decretado pelo poder que dirige o universo – em outras palavras, pela Lei, que designa a cada criatura o que lhe é devido. Logo, dar espaço para o medo, sofrimento ou raiva é tornar-se um fugitivo.
Um homem deposita sua semente na barriga de uma mulher e segue adiante, a partir daí outra causa passa a agir e traz um bebê perfeito – que transformação! O mesmo homem coloca comida goela abaixo e novamente alguma outra causa passa a agir e converte isso em sensação e movimento e, resumindo, em vida, vigor e outros produtos que são muitos e variados. Leve em consideração esses processos, que são forjados de maneiras tão misteriosas e apreenda o poder que está trabalhando ali, da mesma forma que discernimos as forças que atraem os objetos para o chão ou para cima – não com os olhos, óbvio, entretanto não menos claramente.
Costume refletir sobre como a vida hoje é uma repetição do passado e observe que isso também pressagia o que está por vir. Reveja os vários dramas por inteiro e seu contexto, todos tão similares, que você conheceu a partir de sua própria experiência, ou pela história passada: todo o círculo da côrte de Adriano, por exemplo, ou a corte de Antonino ou as cortes de Filipe, Alexandre, Creso. A execução é sempre a mesma, somente os atores mudam.
Quando você observar um homem demonstrando raiva ou ressentimento por qualquer coisa, pense em um porco esperneando e guinchando sob a faca sacrificial. Outro que se aninha solitário em seu sofá, lamentando silenciosamente nossa servidão, não é diferente. Somente aos seres racionais é assegurado o poder de se conformar voluntariamente com as circunstâncias, a própria conformidade sendo uma necessidade severa exigida de toda coisa criada.
Sempre que tiver algo em mãos, pare a cada passo e pergunte-se: “É a ideia de deixar isso para trás que me faz odiar a morte?”
Quando o erro de alguém te ofender, contemple a si mesmo e busque quais defeitos semelhantes são encontrados em você. Você, também, encontra seu bem em riquezas, prazeres, reputação ou coisas do tipo? Pense nisso e em breve sua raiva será esquecida sob a reflexão de que ele apenas está agindo sob pressão. O que mais ele poderia fazer? Alternativamente, se puder, planeje uma forma de livrá-lo dessa pressão.
Permita que a visão do Golfo Sátiro recorde a visão dos mortos Socráticos ou Eutíquio ou Hímen. A visão do Eufrates trazer ã mente Eutíquio ou Silvano, que um olhar a Severo, lembre-te de Crito ou Xenofonte. Quando se ver, lembre-se dos imperadores que o precederam. Assim, com todo homem, imagine sua contraparte e então siga refletindo: “Onde estão todos eles agora?” Lugar algum – ou qualquer lugar. Dessa forma você se acostumará a olhar para tudo que é mortal como vapor e nada e tanto mais que se você quiser se lembrará de que uma vez mudadas as coisas elas estão para sempre fora de alcance. Então por que resistir e se retesar, ao invés de estar contente em viver nossos poucos momentos de forma decorosa? Pense nos materiais e possibilidades para o bem que você está rejeitando. Porque o que são todas as suas tribulações senão exercícios para o treinamento da sua razão uma vez que ela tenha aprendido a ver as verdades da vida sob a luz filosófica apropriada? Seja paciente, então, até que você as tenha tornado familiares e naturais para si mesmo, da mesma forma que um estômago forte pode assimilar qualquer tipo de dieta ou um fogo alto pode transformar tudo que é arremessado a ele em calor e chamas.
Não deixe que ninguém tenha o direito de dizer, sem faltar à verdade, que você não é íntegro ou bondoso. Se alguém pensar esse tipo de coisa, assegure-se de que sejam infundadas. Isso só depende de você, pois o que mais pode te impedir de alcançar a integridade e a bondade? Se você não pode viver assim, não há mais porque viver, já que nesse caso nem mesmo a razão poderia desejar sua continuação.
O que é o melhor possível a ser dito ou feito com os materiais à sua disposição? Seja lá o que for, você tem o poder de dizer ou fazer. Não deixe haver nenhum pretexto de que você não seja um agente livre. Essas lamúrias suas serão infidáveis até o momento em que cumprir as tarefas naturais do homem usando quaisquer materiais que estejam à mão se torne tão importante para você quanto os prazeres são para o voluptuoso. (De fato, todo exercício de nossos devidos instintos naturais deve ser considerado como uma forma de prazer e as oportunidades para isso estão presentes em todo lugar). Um rolo, para ter certeza, nem sempre tem o privilégio de se mover como quer, nem a água, nem o fogo ou qualquer outra coisa que esteja sob o comando de sua própria natureza ou de uma alma sem razão, pois há muitos fatores que intervêm para prevenir isso. No entanto, uma mente e uma razão podem encontrar um caminho através de quaisquer obstáculos, como sua natureza os permite e sua vontade as induz a fazer. Defina para si como a razão encontra um caminho para cada barreira tão tranquilamente quanto o fogo se amontoa e sobe, ou uma pedra cai, ou um rolo desce um morro e se contente em não perguntar mais nada. Em quaisquer casos as interferências ou afetam apenas o corpo – que não passa de uma coisa inanimada – ou são impotentes para nos destruir ou prejudicar a não ser que sejam ajudadas por nossos preconceitos e a rendição da própria razão. Se fosse o contrário, seu efeito sobre o indivíduo seria danoso e embora saibamos que pelo resto da criação a ocorrência de qualquer contratempo envolve alguma piora de sua vítima, já no caso do homem podemos até dizer que ele se torna melhor e mais louvável pelo uso correto que faz da adversidade. Em suma, nunca esqueça que nada pode prejudicar o verdadeiro cidadão se não prejudica a própria cidade e nada pode prejudicar a cidade se não infringe a lei. O que chamamos de contratempos não infringem a lei, logo não causam danos nem à cidade nem ao cidadão.
Uma vez que os verdadeiros princípios tenham sido gravados na mente, mesmo o menor lugar comum bastará para relembrar a futilidade dos arrependimentos e dos medos, tais como, por exemplo: “O que são os filhos do homem, senão folhas que caem ao soprar do vento?”. Seus amados filhos foram apenas folhas desse tipo, folhas, também, são as multidões, aquelas vozes querendo ser convincentes que gritam suas aclamações, lançam seus xingamentos ou escarnecem e mal dizem em segredo. Folhas, novamente, são todos aqueles em cujas mãos sua fama deve cair em breve. Todos “florescem na estação primaveril”, os vendavais os derrubam e sem demora a floresta repõe novo verde em seus lugares. Impermanência é o distintivo de todos e mesmo assim você os busca, ou foge deles, como se fossem durar toda a eternidade. Um momento e seus olhos se fecharão e pelo homem que te carrega para seu túmulo, também, em breve cairão as lágrimas.
O dever de um olho saudável é enxergar tudo que é visível e não pedir que tudo seja apenas verde, pois isso apenas caracteriza uma visão com problemas. Da mesma maneira a audição e o olfato, se saudáveis, devem estar alertas para todo tipo de sons e odores e um estômago saudável para todos os tipos de carnes, como um moinho que mói qualquer grão de acordo com sua estrutura. Da mesma forma uma mente saudável deve estar preparada para qualquer coisa que aconteça. Uma mente que clama “Ó, que meus filhos sejam poupados” ou “Que o mundo cante louvores para todos os meus atos”, é como o olho que deseja apenas o verde ou um dente desejando apenas coisas moles.
Nenhum homem é tão afortunado que ao lado de seu leito de morte, não tenha alguns que se felicitem com a perda por vir. Ele era virtuoso, digamos, e sábio; mesmo assim, no fim não haverá um que não murmure sob seu nariz, “Finalmente podemos respirar livremente sem nosso mestre! Claro, ele nunca foi duro com nenhum de nós, mas eu sempre senti que ele tinha um desprezo silencioso contra nós”. Tal é o destino do virtuoso. Já para o resto de nós, quantas outras razões não são boas o bastante para fazer alguns de nossos amigos felizes em se livrarem de nós! Pense nisso quando vier a morrer. Será mais fácil partir ao refletir: “Estou deixando um mundo no qual os próprios companheiros por quem tanto trabalhei, rezei e pensei, me querem longe e esperam ganhar algum alivio depois, então como pode algum homem lutar para estender seus dias aqui?”. Porém não vá, por isso, partir tendo sua bondade diminuída para com eles. Mantenha sua bondade, boa vontade e caridade de costume e não sinta a partida como um puxão, deixe que seja como aquelas mortes indolores nas quais a alma desliza facilmente do corpo. Inicialmente a Natureza o juntou a esses homens e o fez um deles. Agora, ela afrouxa o laço. Estou livre de meus próprios parentes, porém sem resistir ou forçar. É apenas mais um dos caminhos da Natureza.
Em qualquer ação, não importa por quem seja feita, torne um hábito se perguntar: “Qual o objetivo dele ao fazer isso?” Porém comece por si mesmo, questione-se dessa forma antes de qualquer coisa.
Lembre, é a força secreta escondida dentro de nós que manipula nossas cordas. Lá reside a voz da persuasão, a própria vida, lá, podemos dizer, está o próprio homem. Nunca a confunda em sua imaginação com seu invólucro carnal ou com os órgãos que aderem a ele, que embora estejam conectados ao corpo, são tão instrumentos dele como é o machado para o lenhador. Sem o agente que incita ou limita suas emoções, as partes não têm utilidade maior do que a fiadeira para o tecelão, a pena para o escritor ou o chicote para o carroceiro.

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