A máquina arquitetônica alienante projetada a partir de seu produto alienado, o arquiteto.

“A cegueira do arquiteto nunca impediu o surgimento de projetos megalômanos, mas permitiu que não fossem vistas as favelas removidas;”
Para o arquiteto, o desenho, assim como toda linguagem, é um processo subjetivo, dependente de uma reinterpretação do que vemos, porém subjacente a isso há ainda algo essencial que pode passar despercebido. O arquiteto enquanto projetista é também tela, pintada por si e sempre modulado, reesculpido pelas múltiplas realidades em que se vê mergulhado, ou como propõe Anne Marie-Willis, há sempre um círculo de influências que variam e fazem variar tanto o arquiteto quanto o projeto:
“...a atividade do design é fundamental para o ser humano – nós fazemos design, ou seja, nós deliberamos, planejamos e esquematizamos de maneiras que prefiguram nossas ações e criações – e por sua vez, a nossa própria atividade de design, juntamente com o design que criamos, agem sobre nós alterando o nosso design.” - Anne Marie Willis
O prefigurar da ação é onde o arquiteto se coloca como intermediário entre aquilo que é e o que se espera que venha a ser. Essa prefiguração resvala sempre na forma como o projeto será recebido por aquele que fica do outro lado e nessa fronteira podem surgir complicações que podem minar a realização das intenções do arquiteto enquanto autor de um projeto. Apesar de a arquitetura ser experiência e ir além dos símbolos que a compõem, podemos tentar compreender esse problema através do que Roland Barthes alerta sobre a interpretação das atividades criativas sem o intermédio de um Autor original:
“Sabemos que um texto não é feito de uma sequência de palavras, liberando um único significado “teológico” (a “mensagem” de um Autor-Deus), mas um espaço de muitas dimensões, nas quais se costuram e se contestam muitos tipos de escrita, nenhuma sendo original: o texto é um tecido de citações, resultante das milhares de fontes da cultura.” - Roland Barthes
Não sendo só imagem, ainda que constituída de uma miríade de símbolos, e também dependendo de outros interlocutores para se realizar, a arquitetura se coloca como uma região nublada entre o que se vê e o que não se vê. É nesse não ver que muito do potencial da arquitetura se perde ou obtém sucesso. Esse outro lado da arquitetura é o que a teoria tenta deslindar e só pode ser compreendido intelectualmente.
A tensão urbana, os diversos filtros e enfoques que se chocam dentro do espaço não estão visíveis no momento da experiência, ao arquiteto cabe conhecer o máximo possível do espaço a ser alterado, não só do ponto de vista técnico como através de todo o aparato teórico. Não existe arquitetura sem entender os não vistos envolvendo o que se pretende projetar. Se passa despercebida alguma relação econômica, social ou política que depois gere conflitos ou mantenha um estado segregatório, não é justo que o arquiteto seja eximido do erro porque se a construção desmoronasse não seria menos grave do que o seu condomínio perpetuando um problema histórico. Esse lado invisível é parte integrante da realidade espacial e é responsabilidade do arquiteto.
Na cidade é errôneo supor que a experiência arquitetônica se resume a uma relação espacial, externa e individualista. Essa relação autista de um arquiteto genial e que age unilateralmente permeia o imaginário e o discurso usado para comentar a história da arquitetura cujo maior problema é o de compartimentar a tal ponto o arquiteto que no âmbito do desenho e do projeto, onde se desenrola a atividade intelectual, de design e, portanto, interna chega-se a extremos que não só se descolam da realidade como arriscam soluções estéticas e estilísticas que permanecem em flagrante choque com uma visão menor (no sentido em que Deleuze e Guattari usam para falar da literatura) e também menos arrogante de arquitetura.
Toda ação pressupõe em maior ou menor nível um complexo mecanismo psicológico e social. O filósofo alemão Ludwig Wittgenstein negou a ideia do ser humano composto pela dicotomia entre “interno” e “externo” ou pensamento e ação como campos separados da natureza humana. Ao propor o humano como uma unidade psicofísica, Wittgenstein pressupõe o pensar e o agir como indissociáveis. Tomando esse conceito livremente e até com certa irresponsabilidade, esse prefigurar arquitetônico que habita a fronteira da ação e do pensar depende de um processo que vai muito além da psicologia individual incluindo tudo o que se coloca como incontornável, da superestrutura da sociedade em que se insere até as nuances individuais mais tênues.
O espaço físico traduzido pelo arquiteto através do desenho — a linguagem que depois vai se tornar espaço texto — é um ponto de costura intencional, ponto em que signos de todos os tipos se instalam trazendo consigo suas possibilidades interpretativas e onde a intencionalidade importa somente na medida em que se relaciona com o raciocínio do projetista já que uma vez terminado, há (ou deveria haver) um desenraizamento do projeto para só então seguir à sua fase de criação, que é a exposição a interpretações múltiplas e irrestritas que tendem a desenvolver um ideário coletivo em torno daqueles signos, ressignificando-os também no processo. Porém o arquiteto é também em si mesmo uma unidade psicofísica e toda sua produção criativa depende de um refinamento intelectual que, nesse caso, passa pelo estudo detido de todo um repertório teórico que embasa, mas também potencializa e, muitas vezes, engessa a arquitetura. O arquiteto verdadeiramente pronto para prefigurar uma arquitetura que se engaje e propicie os melhores resultados é aquele cujo aparato teórico fornece ferramentas que tornam tão compreensível quanto possível o “não visto”.
A cegueira do arquiteto nunca impediu o surgimento de projetos megalômanos, mas permitiu que não fossem vistas as favelas removidas; não anula o recebimento de um diploma, mas faz com que arquitetos não olhem para o bairro onde estudam, o povo com quem dividem o espaço, os choques ao seu redor. A cegueira e a superficialidade são programadas, têm um propósito a servir que talvez não coincida com o objetivo do arquiteto nem com os anseios de quem depende dessa educação.
Querem nos convencer que o arquiteto é parte de um escritório chique ou herói de uma revolução abortada, um artista egocêntrico, antes de tudo um excesso. Diante disso, procurar o não visto, essa estrutura que, apoiada sobre nós, esmaga tanta coisa é uma necessidade premente porque a alienação é o benefício do mercado que adora o diploma da instituição alienante, é o orgulho de quem quer mansa a mente que poderia ser a mais afiada. Sem pensar fora da conjuntura dada a arquitetura é só um nome, uma técnica, mais um produto.
