O fim último da polarização é a ruptura: acerca do país que nos foi roubado
“O choque como meio de resolução coletiva incute uma estrutura inescapável onde as disputas são ganhas às expensas daquele que se interpõe como inimigo.”
Estamos rachados. É impossível passar um dia sem lidar com pelo menos alguma forma de polarização, uma conversa que por puro descuido vai parar num assunto espinhoso onde você (e o outro) descobrem se aquele que até então conversava civilizadamente sobre temas rotineiros é um ignorante insuportável ou um amigo esclarecido. Os polos estão aí para incluir e afastar, esquerda, direita, liberais, socialistas, feministas, machistas, ativistas, homofóbicos, conservadores. Na mente de cada um vive o humano idealizado em sua perfeição e também em sua imperfeição, aquela pessoa que concorda com tudo o que você também pensa ou a pessoa digna de asco por sua obtusidade, defendendo o que supostamente só pode ser impensável.
Esse julgamento por oposição, o ímpeto de avaliar o outro somente na medida em que ele se aproxima ou se afasta de nossas próprias ideias é uma forma mesquinha de nos reconhecermos como parte um grupo e negarmos a aproximação com os outros. A mesquinhez reside no fato disso reforçar a sensação de populações estanques que não se intercomunicam, impedir a mudança de opinião e, se levarmos em consideração o espaço coletivo, é também um sinal claro de que negociações estão fora de cogitação. A falta de fluxo e interação entre os discursos sufoca o ideário coletivo, limitando a diversidade e especialmente, impedindo que alterações aconteçam por causa de um ambiente onde todos se agarram desesperadamente a cartilhas que surgem mais do jogo midiático-eleitoreiro do que de um interesse real pela complexidade das questões.
Nesse terreno árido das dicotomias a única coisa que brota são as lideranças que em seu charme e intransigência, angariam essa tensão constante para idealizar e, por conseguinte, obscurecer ainda mais os problemas reais e suas nuances em troca de uma história bem-acabada com mocinhos e vilões onde, sejam eles uma suposta direita nazista ou uma esquerda stalinista, se delineia um proceder cego diante daquilo que é, quase sempre, um espantalho. Esse plano de ação acaba se tornando, por um completo abandono do debate intelectual, que às vezes se confunde com um vociferar raso e com textões do Facebook (ou ainda mais baixo, colunas de jornais da grande mídia), um script que define o posicionamento e também o nível de engajamento da pessoa que o segue.
O choque como meio de resolução coletiva incute uma estrutura inescapável onde as disputas são ganhas às expensas daquele que se interpõe como inimigo. Sem o espaço para debate e negociação a argumentação é sempre a mais exaltada e extrema e infelizmente o que se coloca como resultado é a manifestação do simplismo, do lugar comum que é mais palatável e óbvio, ainda que desastroso, especialmente para os que ficam à margem de todo o processo decisório. Todavia, a intensificação desse quadro é uma amalgama de interesses, preconceitos e medos que se instalaram ao longo de anos e hoje extravasam caudalosos sobre nossa sociedade recém mutilada por uma amputação injusta e sorrateira.
A polarização só pode ser disputada no ambiente político, tendo em vista que o fechamento dos outros canais fortalece o poder das instituições oficiais e facilita a dominação de ambos os lados por quem puder assumir as posições mais vantajosas dentro dessa estrutura estabelecida. Interessante foi ver como essas instituições podem ser usadas para desarmar toda a sociedade e em seguida serem responsáveis por seu próprio desenraizamento político e social, numa metamorfose que vai muito além de um aparelhamento estatal comum nas trocas de poder.
O que aconteceu foi uma ruptura das mais profundas através do desmantelamento intencional e organizado do modelo político, econômico e social que pautou o país nos últimos anos. Modelo que se desenvolveu ao longo de anos com as influências que precisaram ser agregadas a partir da dinâmica de forças dentro do país, dependente sempre do processo democrático e de um respeito pelas instituições – mesmo com os percalços esperados - não apenas tal como rege a lei, mas tal como se colocam no ideário público e segundo os anseios da maior parte da população e do projeto de nação que bem ou mal seguia legítimo.
Sendo a dicotomia o que permitiu a articulação dos algozes então é dever pensarmos o cenário como um todo para que a estrutura geral que tão gravemente nos falhou não se mantenha. Mesmo uma vitória por feroz e implacável oposição, como o foi para eles, já não mais seria um retorno ao estado de coisas anterior ao acirramento ideológico, nada apagará da história o que foi feito. Buscar um retorno se não é conservadorismo é pelo menos um saudosismo perigoso que pode nos atar as mãos num momento em que a ação é necessária.
Nos resta resistir, apontar a falta de legitimidade e buscar reparações pelo estrago que fazem hoje no Brasil, porém é importante considerarmos que o retorno não é possível. É premente o surgimento de um novo objetivo, que também não virá por um resgate do passado que mascare o presente, a luta que passou serviu ao seu tempo, temos que estruturar os esforços que virão. E lutar é essencial, mas há de se pensar, de elaborar não só os próximos passos como os próximos anseios e para isso não devemos esquecer o que nos foi tirado. O que perdemos não foi apenas o projeto de país, perdemos a própria capacidade de projetar e não haverá luta que baste enquanto gritarmos por um retorno, porque o que era não voltará, eles se certificaram disso. O que vem ainda é incerto, uma triste incerteza para todos nós que tínhamos algum otimismo com o Brasil anterior ao golpe. De alento resta a possibilidade, porque a nossa incerteza é também a incerteza deles.
