Literatura moderna e a morte do Autor em Roland Barthes

“A escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito...” - Roland Barthes
Não é raro os fãs buscarem nos autores as explicações para filmes e livros considerando-os a única fonte válida de interpretação, porém assim como Anne-Marie Willis defende que o designer não é prevalente no que cria, há ainda outro pensador de peso seguindo uma linha de raciocínio algo parecida. Em 1968 Roland Barthes publicava “A morte do autor”, um texto instigante acerca da importância do Autor, da Crítica e do Leitor para o pensamento moderno.
Se ambos convergem para uma crítica que mina a importância do criador da obra, Barthes estava mais preocupado com a literatura e foi além, demonstrando como questionar a figura do Autor automaticamente coloca em crise também a da Crítica. Para Barthes a “escrita”, aquela que a grosso modo pode ser chamada de literatura, é independente, um corpo de símbolos:
“A escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve.
Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa.”
Stéphane Mallarmé foi um crítico e poeta francês a quem Barthes credita o pioneirismo desse conceito de escrita:
“Em França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no lugar daquele que até então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia - impossível de alguma vez ser confundida com a objetividade castradora do romancista realista - atingir aquele ponto em que só a linguagem atua, «performa», e não «eu»: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (o que é, como veremos, restituir o seu lugar ao leitor).“
Indo direto contra a crítica convencional Barthes não recua, propondo a ideia de que uma obra é sempre dependente do leitor:
“Supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho. Exatamente ao contrário, o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora.
[...]
Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a «mensagem» do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.”
Opondo a imagem do Autor e a do scriptor ele expõe o que, para ele, é a escrita moderna:
“Sucedendo ao Autor, o scriptor não tem já em si paixões, humores, sentimentos, impressões, mas sim esse imenso dicionário onde vai buscar uma escrita que não pode conhecer nenhuma paragem: a vida nunca faz mais do que imitar o livro, e esse livro não é ele próprio senão um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada.
[...]
Na escrita moderna, com efeito, tudo está por deslindar, mas nada está por decifrar; a estrutura pode ser seguida, «apanhada» (como se diz de uma malha de meia que cai) em todas as suas fases e em todos os seus níveis, mas não há fundo; o espaço da escrita percorre-se, não se perfura; a escrita faz incessantemente sentido, mas é sempre para o evaporar; procede a uma isenção sistemática do sentido, por isso mesmo, a literatura (mais valia dizer, a partir de agora, a escrita), ao recusar consignar ao texto (e ao mundo como texto) um «segredo», quer dizer, um sentido último, liberta uma atividade a que poderíamos chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois recusar parar o sentido é afinal recusar Deus e as suas hipóstases, a razão, a ciência, a lei.”
Barthes chama atenção para a negligência com a figura do leitor e contesta a ideia de que ele depende do Autor:
“Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.
[...]
Sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.”
Subversivo, “A morte do Autor” é o tipo de texto que ainda hoje precisa ser discutido. E essa talvez seja a definição de todo pensamento relevante. Barthes desenvolveu em 1968 uma objeção que nenhum escritor ou leitor deveria ignorar, mas que infelizmente ainda é menos popular do que deveria, ao menos fora da academia.
