Renascimento e o parto do homem moderno, segundo James Joyce

"Na verdade, pode-se dizer que o homem moderno tem uma epiderme ao invés de uma alma." - James Joyce
James Joyce é conhecido e imortalizado por sua obra de ficção, em especial pelo Ulysses: um calhamaço centro de tantos debates que dizem ser um livro muito mais discutido do que lido. Porém, além da ficção Joyce também foi crítico e ensaísta. Em suas peregrinações pelo mundo escreveu muitas vezes fora do inglês.
Em abril de 1912, dois anos antes de conseguir publicar oficialmente seu primeiro título, Dublinenses, Joyce escreveu “A influência universal da literatura renascentista”. Este ensaio, originalmente escrito em italiano, mostra sua visão afiada e um pouco conservadora do que foi o renascentismo e como sua influência se estendeu até o homem moderno.
Joyce começa questionando a ideia de que a humanidade amadureceu apenas depois do Renascentismo:
“Concordo que esse sistema social pode se vangloriar de grandes conquistas mecânicas, de grandes e benéficas descobertas... Porém no meio dessa sociedade complexa e variada a mente humana, quase aterrorizada pela grandeza material, torna-se perdida, nega a si mesma e enfraquece progressivamente.”
Essa mudança, segundo um Joyce quase saudosista, foi gerada por uma rebelião contra o absolutismo escolástico e contra o sistema filosófico aristotélico que culminava na ideologia cristã. Nessa rebelião:
“[O espírito humano] abandonou sua paz, seu lugar, porque havia se cansado dele, assim como Deus que cansado (se me permite um termo levemente irreverente) de suas próprias perfeições criou tudo a partir do nada, assim como a mulher que cansada da quietude que estava desvastando seu coração, direcionou seu olhar para uma vida de tentação.”
Entretanto em momento algum Joyce deixa de reconhecer o valor da produção literária dessa época:
“Seria fácil preencher essas páginas com nomes de grandes escritores que a onda do Renascentismo elevou aos céus (ou quase lá), fácil elogiar a grandeza de seus trabalho que, de qualquer maneira, ninguém está colocando em dúvida, e terminar com um elogio ritual: e isso pode ser um ato de covardia já que recitar uma ladainha não é o mesmo que investigação filosófica. O X da questão está em outro lugar.”
Recusando essa saída fácil ele desenvolve o cerne de sua argumentação. Para o autor do Ulysses o crucial do período foi uma alteração de mentalidade que “colocou o jornalista no lugar do monge”:
“[a renascença] depôs uma mente afiada, limitada e formal para passar o cetro a uma mentalidade que é dócil e versátil... uma mentalidade que é incansável e algo amorfa.”
Os mesmos força e ímpeto renascentistas que deixaram o formalismo para trás também tiveram efeitos importantes sobre a mentalidade moderna e os extremos a que chegaria:
“Em três séculos uma capacidade criativa inesgotável, fortes paixões, o intenso desejo de sentir, uma curiosidade irrestrita e prolixa degeneraram em um sensacionalismo frenético. Na verdade, pode-se dizer que o homem moderno tem uma epiderme ao invés de uma alma.”
Com uma mistura de pessimismo e compreensão, Joyce contrapõe a origem da Renascença e os resultados finais de sua existência:
“A Renascença surgiu quando a arte estava morrendo por causa da perfeição formal e o pensamento se perdia em vãs sutilezas.
[…]
A Renascença chegou como um furacão no meio de toda essa estagnação e por toda a Europa se ergueu um tumulto de vozes e, embora os cantores não mais existam, suas obras podem ser ouvidas como as conchas do mar nas quais, se as aproximamos do ouvido, podemos ouvir a voz do mar reverberando.
Quando se ouve, soa como um lamento: ao menos é assim que nosso espírito interpreta. Realmente estranho! Toda conquista moderna, do ar, da terra, do mar, doença, ignorância, derrete, por assim dizer, na provação da mente e é transformada em uma pequena gota de água, em uma lágrima. Se a Renascença não causou nada mais, fez muito em criar dentro de nós e nossa arte um senso de piedade para com cada ser que vive e cria esperanças e morre e se ilude. Ao menos nisso nós ultrapassamos os antigos: nisso o jornalista popular é melhor do que o teólogo.
James Joyce”
Não é possível ignorar a obra que Joyce nos legou assumindo seu papel de, como homem moderno, ser descendente do fenômeno que ele diagnostica. “A influência universal da literatura renascentista” é um ensaio inteligente que não tira os pés do chão em nenhum momento, uma leitura recomendada em especial para fãs e estudiosos de Joyce enxergarem melhor seu mundo e suas influências, porque muito além da teoria vemos a própria mentalidade do escritor se descortinar sob esse escrutínio de seus contemporâneos.
