Nem todo erotismo contemporâneo é banalidade

“Minha impressão era que, mesmo quando a literatura se propunha a falar de sexo, o sexo sempre ficava por último.” – Anna P.
Sempre que entro em uma livraria vejo diversos títulos eróticos com capas e projetos gráficos que parecem ter saído da embalagem de um vibrador barato, porém ainda assim faço um esforço, um ato de fé e leio algumas sinopses. E o que vejo nas sinopses é também o que permitiu esses livros, que tradicionalmente eram tidos como malditos, se tornarem tão populares: um conservadorismo mal-ajambrado que não é capaz de mexer com ninguém, uma superficialidade que nos melhores casos é insossa, mas que costuma ser também a reprodução de um discurso preconceituoso maior.
Até que descubro uma coleção com alguns títulos eróticos interessantes da editora Hedra e, para minha surpresa, entre Sacher-Masoch, Stoller e Glauco Mattoso vejo um nome até então desconhecido para mim: Anna P. Uma escritora brasileira, estreante e que tem um blog onde escreve com o mesmo pseudônimo. Dois ou três posts lidos depois e eu estava comprando o livro “Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada”. Encontrei em seu blog:
“Minha impressão era que, mesmo quando a literatura se propunha a falar de sexo, o sexo sempre ficava por último. Ora por baixo de lençóis de seda e luzes macias, ora como resultado de conquista, engodo, brutalidade; ficava em segundo plano diante do fetiche ou resignado à sua insignificância perante uma transgressão.
Tudo vinha antes do sexo. E quando chegava a hora que realmente me interessava – encontro entre corpos, calor, cheiro, fluidos... – meia dúzia de palavras e fim.” - Anna P.
O livro é dividido em três partes e logo no começo ela parece suprir essa insatisfação com um fluxo de pequenos capítulos que se interconectam por dois fios: a narradora-personagem e o sexo. Cru, despudorado e visceral, o livro cria um caleidoscópio onde, em um primeiro momento, tudo parece existir apenas enquanto relacionado ao sexo. Porém conforme a leitura avança, surgem alguns pequenos padrões trazendo ideias e significados que dificilmente seriam notados se tomássemos o texto de cada capítulo individualmente.
Se em cada texto tudo gira em torno do sexo, ao longo dessa primeira parte do livro o que vemos é que o próprio sexo gira em torno da narradora e isso é essencial, porque ao contrário do que pressupõem alguns, mesmo no sexo vemos a extensão do mundo externo a ele, o mundo do trabalho, das obrigações, opressões e deveres. As formas variadas dos capítulos e das experiências sexuais importam, mas falo aqui da repetição, não da variação. É pela força da repetição que Anna P usa pequenas sutilezas sexuais – a forma de falar sobre seus parceiros, a maneira como pensa seus desejos, a reação a algumas expectativas não realizadas – para montar um quadro onde surgem pistas de como é o pensamento e a vida da personagem fora do quarto. “Tudo vinha antes do sexo” ela diz em seu blog, mas não em seu livro, não nessa parte. Nada vem antes do sexo, mas tudo também parece alcançar o sexo e dar sua contribuição, um tudo que apenas intuímos e tentamos adivinhar mas que a opacidade do texto ainda não nos permite uma exploração detalhada.
A exploração que nos foi vedada de sua vida surge na segunda parte onde a narradora some e vemos então o “tudo” além do quarto através da maneira como outras pessoas agem e tentam se comunicar com ela. Pelas incertezas, medos, preconceitos e violências dos outros testemunhamos a formação psicológica e social da narradora que até há pouco estava nos contando sua vida sexual. Vemos o mundo que antes vislumbramos de maneira tênue.
Talvez um dos momentos mais importantes desse livro (considere que isso é dito por mim, homem cis) é ver aqui o desenrolar difuso de experiências que a narradora junta pela disposição do texto e a ordem com que as desilusões, violências e sofrimentos se amontoam para culminar nas cartas enviadas por um ex-marido que surpreende por demonstrar um nível intelectual acima da pessoa comum. Surpreende porque essa intelectualidade não tenta se despir dos preconceitos e egoísmos que lhe deveriam soar gritantes, é um homem culto que usa a inteligência para justificar sua violência e tentativas de manipulação. A empolgação e a liberdade que subjazem a primeira parte do texto contrastam aqui com um amargor e uma vontade de desviar os olhos do texto, vontade essa que está em quem lê, porque a narradora se coloca de lado como a dizer “veja o meu mundo”, ou melhor, veja meu “Percurso”, título que ela escolheu para a segunda parte do livro.
Ao contrário do que a literatura maldita tende a fazer, onde essas violências e exclusões servem como justificativa e motor para transgressões colossais, ou como diz Bataille, para uma organização consciente de ir além do interdito, no livro da Anna P o resultado é uma busca também radical, mas por uma liberdade que vai além, uma ressexualização que tenta existir fora desse mundo que teima em se estender inclusive para onde a narradora-personagem busca a maior independência.
O resultado desse choque surge entre os dois extremos: entre o mundo patriarcal e a plena liberdade existe a narradora que ao fim do livro mostra então seu contato com o mundo. Como a nos mostrar que somente depois de vermos sua plenitude pessoal e então o choque com a sociedade em que está inserida é que seremos aceitos para ver as coisas por seus olhos. Olhos irônicos, mordazes, mas algo bem-humorados.
Falo desse livro sem tocar em alguns temas essenciais que existem ali, em especial para as leitoras, porque sou um leitor e deixo essa outra tarefa para alguém que esteja em melhor posição para falar disso do que eu. Para os homens é uma leitura importante, em especial porque é difícil passar incólume por esse livro, nem que seja por lembranças de tempos anteriores a uma tentativa adequada de se reeducar. Se você não sabe de qual reeducação estou falando, recomendo que leia o livro e a cada vez que você se ofender ou ficar inseguro provavelmente a causa é que algum dos seus privilégios está sendo questionado. “Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada” é um alívio dentro do que se publica hoje sob a alcunha de literatura erótica, Anna P prova que nem todo erótico contemporâneo é banalidade e isso por si só já seria algo digno de elogio.
