Voyeurismo e a realidade borrada nas pinturas de Edward Hopper

“Mas no tédio é quando sentimos o tempo e o ser com maior precisão. Pode inspirar um ânimo profundo. Talvez seja isso que essas pessoas estão sentindo.”
A escuridão da noite, um bar ainda aceso, solitário ponto de encontro em uma rua deserta. Você já viu uma pintura assim por aí. Há ali um ver o mundo que se infiltra despercebidamente nessas vidas. Assim como as outras pinturas feitas por Edward Hopper, em Nighthawks (“Aves noturnas” ou “Águias noturnas” em português) damos de cara com um bar que se destaca de tudo ao seu redor pelas luzes acesas e as pessoas absortas e distraídas em seu interior.
"Nighthawks". Edward Hopper, 1942. Óleo sobre tela.
Essa semana o Evan Puschak do canal Nerdwriter postou uma análise dessa que é a pintura mais famosa do Edward Hopper. Ele começa por notar uma sensação de realismo nas pinturas, entretanto sem que isso seja levado a cabo pela técnica, já que não há um interesse em uma representação quase fotográfica. A sensação de verdade vem justamente da simplificação dos traços que tornam tudo mais universal:
“Ficando um passo atrás, com representações um pouco mais gerais, um pouco mais desconectadas em relação a lugar, história e pessoa. Dessa maneira há o espaço exato para que você encaixe sua própria vida na obra do Hopper. Mas uma vez lá dentro é impossível não ficar preso ali e ver aquela vida de acordo com os temas dele.”
Autorretrato. Edward Hopper, 1930. Óleo sobre tela.
Com Hopper essas pessoas são possíveis representações de nós mesmos, um espaço das nossas vidas se desenrolando na tela enquanto observamos de fora. Porém não se trata apenas de observar, há ali uma certa interação característica do voyeur, de ver algo muito pessoal sem que essa pessoa sequer tenha dado permissão. Uma invasão que só é possível por ser anônima, mas que também garante um meio de ver alguém agindo livremente justamente pela inconsciência de estar sendo observado.
“As pessoas nas pinturas estavam tanto atrás quanto na frente de janelas. Claro que as janelas são o lugar onde a separação entre externo e interno se torna complicada. E não porque podemos atravessá-las fisicamente, mas porque nosso olhar o faz, porque nossa visão invade esses mundos privados. De fato, nas obras de Hopper as janelas aparecem como se nem mesmo estivessem lá.”
Evan Pushak nos lembra do longo esforço que Hopper dedicava a cada uma de suas pinturas. Dos esboços e estudos até a finalização da obra ele poderia levar meses e isso deve ser levado em consideração na hora de apreciar suas pinturas:
“Hopper queria que sua devoção com cada obra se repetisse em nossa apreciação. Assim como ele pintava lenta e deliberadamente, ele também espera que olhemos, de verdade, que fiquemos vulneráveis como um observador sempre está, esteja ele ou ela se abaixando na escuridão do prédio ao lado ou apenas atravessando a rua.”
Na época em que Nightwaks foi pintada havia nos EUA o costume de se apagar todas as luzes das cidades durante a noite. Isso porque o ataque a Pearl Harbor havia sido recente e o medo de novos ataques fez com que as pessoas tentassem “esconder” a luz das cidades à noite para dificultar a localização de alvos. Entretanto, Hopper nunca apagou nem disfarçou a iluminação de seu estúdio de pintura onde passava a noite pintando. Noites que permitiram o surgimento de Nighthawks, a imagem da última luz acesa em uma rua escura, vista por alguém como a atravessar a rua.
“A luz do restaurante em Nighthawks parece ser a última ainda brilhando na cidade. E por essa razão eu acho que você pode encontrar uma leitura um pouco mais otimista dessa pintura. O que mais podemos fazer diante de grandes inquietações e dúvidas além de trabalhar e seguir adiante? Todas as pessoas em Hopper parecem estar unidas com o momento atual. Solitárias? Sim. Aguardando? Talvez um pouco entediadas? As pessoas em Nighthawks não são diferentes. Mas no tédio é quando sentimos o tempo e o ser com maior precisão. Pode inspirar um ânimo profundo. Talvez seja isso que essas pessoas estão sentindo. Solitárias e reunidas naquele navio iluminado zarpando contra a escuridão de que ainda está por vir. A luz amarela esverdeada dessa cena, assim como aquela no estúdio do Hopper, é um substituto pífio para a luz do sol, mas ainda pode, através de janelas gigantes, iluminar o mundo.”
Em uma profunda avaliação da imagem, Susan Sontag nos mostra a relação entre o real e as imagens que produzimos, relações essas que são tão mais poderosas quanto mais sutis. Uma extensão entre a vida do pintor e a arte, mostra que mesmo de maneira inconsciente há muito do seu tempo em cada obra. Entretanto, talvez o que as faça durar tanto tempo e serem importantes para tantas pessoas diferentes é o que há de menos óbvio e mais universal, a sugestividade de que falava Edgar Allan Poe.
Esse vídeo faz parte da série “Understanding art” do canal Nerdwriter. Assista o vídeo completo com mais informações sobre a obra e o pintor:
