Sobre porcos e censura, uma declaração de intenções

Sobre porcos e censura, uma declaração de intenções

"É apesar desse ímpeto destrutivo que a seleção de ideias rende bons frutos e a internet pode ser o melhor deles."

Silo Global de Sementes de Svalbard.

Pensando em Evolução e como genes se replicam e são passados adiante é difícil fazer associações além da química e da biologia. No entanto, genes são basicamente repetições de unidades químicas que em sua repetição funcionam como um alfabeto capaz de codificar certas informações, logo, evolução é um processo que seleciona os melhores códigos ou conjuntos de informação. Partindo desse pressuposto é possível encontrar outros fluxos de informação com que lidamos diariamente sem que seja comum enxergamos sob um olhar evolucionário. Essa outra categoria de informação se refere às ideias em si, ou memes, termo cunhado por Richard Dawkins. A definição de memes aqui inclui mas não se restringe ao que a internet popularmente conhece como meme: imagens e textos que viralizam na rede. O meme é a menor parte funcional de uma ideia, o que poderia, a grosso modo, ser considerado seu gene.

Cozinhar nem sempre foi senso comum, milênios atrás a obra de algum gênio foi perceber que um porco podia ser comida e que provavelmente ficaria muito mais gostoso depois de cozinhar. Segundo o primatólogo Richard Wrangham, cozinhar foi o que permitiu, por facilitar nossa digestão, o desenvolvimento de nosso cérebro até o ponto em que se encontra hoje. Esse meme, que ainda perdura, foi selecionado por ser bem adaptado e embora neste caso seja um meme benéfico isso não significa que todo meme bem adaptado é realmente bom para nós. A história nos mostra que memes relacionados à escravidão, misoginia e racismo também são bastante resilientes e difíceis de serem abandonados.

Antes da escrita tínhamos que usar a tradição oral e métodos visuais como desenhos, danças e representações com roupas e máscaras para preservar e propagar memes. Alguns memes duram pouco, outros, como o meme de cozinhar, podem perdurar por muito tempo e de diversas formas, estando em uma pintura, uma música, poema ou em obras arquitetônicas.

Já as ideias só estão ativas (vivas, se preferir) enquanto informações manuseadas pela mente humana e, como os seres vivos, dependem do ambiente em que estão existindo para se propagar. Esses memes se popularizam não por seu conteúdo ser “bom” ou “ruim”, popularizam-se conforme estão bem adaptados ao seu meio, ou seja, à mentalidade e à sociedade de cada pessoa que lida com eles.

É fácil identificar ideias que funcionam como doenças. Homofobia, por exemplo, é um preconceito cujos memes estão sendo combatidos no Brasil e para isso é preciso difundir outros memes que refutem e desconstruam esse meme que nos causa problemas. Não é um processo simples ou rápido e nada garante que dure caso o resultado seja alcançado.

Carregadora de água. Lorna Simpson, 1986.

O enfrentamento do racismo não é novo e historicamente houveram mudanças significativas, embora ainda longe de qualquer nível tolerável. Pode-se dizer que os memes que suportam os tipos mais radicais desse preconceito estão agora menos presentes em nossa sociedade. Isso só acontece devido a uma mudança conjuntural que vai muito além da existência de ideias que ataquem o problema. Criar os memes certos não é o bastante, é preciso encontrar formas de fazê-los se infiltrar na maior parte da sociedade e de colocar em funcionamento sistemas de repúdio às ideias que não são bem vindas.

Bibliotecas, museus e cinematecas preservam e expõem memes que às vezes se circunscrevem ao seu tempo, região ou cultura e não encontram espaço para se perpetuar, como obras de religiões e sociedades antigas ou produções artísticas de minorias. Os museus são pontos de congregação por esse ambiente plural em que a diversidade de memes nos faz perceber um conceito mais amplo de humanidade. A habilidade técnica importa pouco pois em um museu o que gera empatia é perceber nossos próprios medos e anseios em pessoas que consideramos como “eles”. Infelizmente o termo “eles” não engloba apenas sociedades extintas, muitas vezes se trata de nossos contemporâneos, daí a necessidade dessas instituições também estarem abertas para o que se cria hoje. Perceber que “eles” são iguais a “nós” é um dos maiores feitos que uma obra de arte pode alcançar. Esse entendimento surge não só das obras que estão expostas, a própria reunião de um acervo sob a égide dessas instituições se beneficia da predisposição à empatia do visitante para criar um ambiente que dificilmente se realizaria fora desses espaços supostamente plurais.

O objetivo da preservação e difusão não só dos memes antigos mas também desse sentido menos óbvio de empatia se cumpre tanto pelos ambientes físicos quanto por suas existências subjetivas como instituições. Não é difícil encontrar em museus peças de menor importância, às vezes fragmentos quase irreconhecíveis de civilizações remotas que em outros lugares passariam despercebidos com filas para ver, até com certa reverência, um tosco pedaço de argila. Visitamos museus com uma boa vontade para com as obras e seus criadores, estando dispostos a apreciar sua cultura, entendê-los e enxergar seus erros e atrocidades não como algo que os desvaloriza, mas como lições importantes que nos legaram.

É esse sentimento de congregação humana e reverência pela arte que qualquer forma de censura, seja pelo interesse moralista ou político de algum grupo ou em nome de alguma divindade, luta por destruir e quando se trata de ideias isso não é o mesmo que o banimento ou o desuso. Hoje poucas sociedades sequer toleram uma discussão séria sobre escravidão porque esse meme está fora de circulação como ideia realizável e não é aceito. Porém Aristóteles defende a escravidão no “A Política” e ainda estudamos seus livros ao invés de destruí-los ou censurar ao menos essa parte. Liberdade inclui responsabilidades como a de saber lidar com informações e garantir que nossos descentes não serão penalizados por nossas atitudes. Obrigações que englobam o constante cuidado em conter memes ruins mas também o de manter viva sua história. Seríamos mais pobres sem esses conhecimentos, o sofrimento que ideias como essas causaram é uma lição da qual não podemos nos esquecer sem incorrer no risco de termos que aprender tudo novamente, talvez da maneira mais difícil.

Por isso não apagamos o holocausto da história, por isso temos feriados como o dia da consciência negra. Costuma ser difícil entender o feriado como algo importante, principalmente quando a luta mudou sem que o entendimento do feriado tenha sido atualizado na mentalidade social coletiva como ocorre, por exemplo, com o feminismo no dia da mulher. Ter um dia como esse no calendário é garantir que ao menos uma vez por ano esse debate não poderá ser ignorado. Feriados são uma ferramenta coletiva de resgate e exposição de memes, razão pela qual deveríamos dar mais atenção ao seu significado do que ao dia de folga que proporcionam.

Jovem preparando cabeça de porco após sacrifício. Vaso, 360-340 a.C.

O desrespeito à liberdade de expressão e o radicalismo religioso não são novos, grupos como o Estado Islâmico existem para provar que não estaremos livres dessa ameaça tão cedo. No Brasil a atuação da polícia militar em protestos demonstrou além de seu costumeiro despreparo um completo desrespeito pela manifestação política. Esses grupos não enriquecem o debate, sua atuação violenta é a própria negação do diálogo, são agentes anti memes. Milênios atrás poderia ter sido catastrófico se alguma força policial tentasse impedir que cozinhássemos porque sentiam empatia pelos outros porquinhos ou desejassem manter o hábito conservador de ingerir comida crua. Felizmente os meios para burlar a repressão têm se mantido um passo à frente dos repressores, embora um tanto precariamente. É apesar desse ímpeto destrutivo que a seleção de ideias rende bons frutos e a internet pode ser o melhor deles.

A informação do meio digital não está em uma situação tão precária quanto exemplares únicos em uma biblioteca ou épicos que só existiam nas mentes de anciões e bardos. A destruição selvagem e a censura ainda não conseguem competir com a internet. O mínimo que podemos fazer é tomar esse espaço, digitalizar todos os memes possíveis não porque ler um livro digital ou ver uma renderização 3D de uma escultura sejam melhores do que o original, mas porque essa é uma forma de preservar e popularizar memes, uma maneira de limitar o censor usando sua própria ignorância. Estando online as ideias se cruzam e se chocam com a mesma importância que a morte e a reprodução sexuada possuem para os seres vivos, a internet é um criadouro de ideias. É aqui que deuses sagram e autoridades fraquejam e depende de nós realizarmos esse potencial de subversão.