Garrafas ao mar: comunicação online e o destinatário de mil faces
"...a internet precisa ser ocupada com a mesma seriedade e cuidado que temos com outros aspectos de nossas vidas, que infelizmente ainda supomos excessivamente diferentes de nossas existências online."
É comum buscarmos um novo hobby ou assuntos incomuns na internet e sermos surpreendidos com as páginas dedicadas e comunidades que apesar de pequenas às vezes são compostas por pessoas de todo o mundo com o mesmo interesse. Fóruns especializados podem ser desorganizados mas costumam ter uma quantidade surpreendente de informações e vem dessas pessoas, que disponibilizam conhecimento gratuitamente, ainda que inadvertidamente, a fama da internet ter todo tipo de informação sem custo algum.
Como garrafas lacradas cujas mensagens boiam no mar à espera de um encontro fortuito onde finalmente se realize a comunicação que até aquele momento era apenas potencial, estar na internet não garante que haverá acesso porque há sempre as barreiras dos buscadores e agregadores de conteúdos e as táticas mercadológicas de diversas redes sociais que limitam o alcance para vender a atenção dos usuários aos criadores de conteúdo e vendedores. Embora não impeçam o acesso essas barreiras dificultam sensívelmente o contato com um público maior. É otimismo demais dizer que na internet se acha de tudo, mas é verdade se pensamos que a internet pelo menos resvala em tudo.
Aqui se reproduzem as relações que temos fora da internet, portanto existe a possibilidade para qualquer conteúdo, ainda que dependa de outros aspectos para alancar sua relevância. Realizar essa ideia de que há tudo gratuitamente na internet é, por um acaso, ver aquilo que é trivial ou familiar para você ser o inesperado e o raro de outra pessoa. Compartilhar sua própria experiência e conhecimento publicamente, ainda que em um meio limitado quando se trata desse tipo de interação, já é aumentar a acessibilidade dessa que não necessariamente é apenas uma cópia para a internet, mas uma verdadeira reelaboração de seu conteúdo e, portanto, dependente de quem o faz e de sua formação. Nessa reformulação é preciso que o resultado final também possa ser compreendido pelo maior número possível de pessoas, mesmo que não possuam as ferramentas necessárias para alcançá-lo por conta própria, ou seja, é melhor perder algo do que transmitir o todo em seus mínimos detalhes e interromper a possibilidade de um diálogo plural.
Umberto Eco via seus livros não lidos como parte essencial de sua biblioteca pessoal - que chegou a ter 30 mil livros - porque neles estava a possibilidade da pesquisa e também um lembrete marcante de tudo que ele ainda não sabia. As postagens vistas, mas não lidas, bem como os comentários de livros que talvez o leitor de um site não conheça, como pode acontecer aqui, permitem a curiosidade que longe de substituir um aprofundamento ou a própria obra, serve como um intermediário para quem não pretende ou ainda não tem a oportunidade de chegar lá. Para os que leram é sempre uma provocação e um convite a se debruçar uma vez mais sobre o assunto.
O surgimento das realidades virtuais trouxe erroneamente a suposição de que algum dia abandonaremos a vida real tal como sempre existiu, entretanto, o digital e a internet são extensões tão reais quanto a vida “analógica”, são vivências indissociáveis do que se passa “fora” dali. Como extensão de nossas mentes e realidades, a internet precisa ser ocupada com a mesma seriedade e cuidado que temos com outros aspectos de nossas vidas, que infelizmente ainda supomos excessivamente diferentes de nossas existências online. Esse cuidado não exclui o entretenimento e a leveza comuns a muitas interações em rede, mas se desejamos reais os benefícios potenciais da internet é essencial nos atermos a algo menos divertido e nos esforçarmos em busca de maiores complexidades e contatos com ideias incomuns, ainda que isso gere sempre o incômodo do novo, ainda que para isso o Facebook precise ficar de lado.
Ter uma disciplina que priorize o que realmente nos importa é difícil porque já fazemos isso diariamente em nossas vidas, nos privamos de tanta coisa em busca de uma seriedade em torno de obrigações e expectativas tanto pessoais quanto profissionais que a internet surge como uma válvula de escape a essas cobranças. Mas fazemos tudo isso também apesar da obrigação, gastamos dinheiro e tempo com livros, festas, obras de arte, cinema, teatro e música ainda que nem sempre seja possível apontar um benefício no sentido próprio que damos ao gasto de dinheiro. Não há uma troca clara além da experiência e do contato com a obra. Ainda assim o fazemos, porque viver é também isso, assumirmos que coisas como o estudo detido da vida, reflexões interiores e a imersão na arte e na mente de outras pessoas com os mesmos medos, anseios e felicidades são mais importantes que o entretenimento pastelão, o trabalho desumanizador e o prazer próprio e é esse o comportamento que precisamos para desenvolver nosso potencial com a ajuda de quaisquer ferramentas digitais.
Enquanto criadores de conteúdo - e em redes sociais como o Snapchat, o Instagram e o Facebook todos o somos - a sedução, o convite tentador a encontrar novas ideias, como sabem e nos ensinam muito bem as religiões e os partidos políticos, esse convite precisa seduzir, convencer, dissuadir o outro a conhecer esse leque de ideias que queremos apresentar. Aí entra a função da beleza, a música, o design, a facilitação do diálogo, o senso de comunidade, a acessibilidade e a gratuidade, ainda que aparente, de muitas dessas instituições. Porém se o método funciona então não se trata de condenar as religiões e os políticos por serem tão bons em convencer pessoas e proliferar suas ideias, o importante é que as pessoas com propostas melhores se preocupem mais com esses detalhes que muitos acham vulgares ou supérfluos, porque desarmar o outro para fazê-lo ouvir é tão importante quanto ter algo de valioso a dizer.
Alain de Botton apresenta a exposição Art Is Therapy.
Nessa disputa de atenção somos bombardeados sem misericórdia: vídeos de gatinhos, notícias urgentes, memes, eventos, mensagens, propagandas personalizadas, tudo compete pelo nosso olhar e o próprio ambiente de disputa impede o aprofundamento em qualquer coisa. Surge nessa realidade virtual um papel que já sabemos essencial em nossas vidas, o do curador. Museus, galerias, feiras literárias, bibliotecas e até cinemas, todos prestam um serviço de curadoria, que apesar de nem sempre atender ao que precisamos, nos permitem navegar um conjunto de obras e pensamentos enquanto ficamos livres dos esforços próprios ao especialista e à crítica.
Na internet, que em nossos tempos de produtividade e abolição do sono, é por excelência o meio da velocidade e da inconstância, o curador se torna um necessário ajudante para nos mostrar o que parece digno de atenção para ele e por conseguinte, para nós. É um problema escolhermos os curadores em que confiamos mas esse, felizmente, é um problema menor do que acompanharmos todos os tópicos que nos interessam e que precisam de tempo e dedicação para nos livrar do curador. Assim, a Wikipedia, o Google e o Youtube são importantes, mas o curador é quem nos indica o que devíamos estar pesquisando por lá, bem como nos seduz para realmente darmos esse passo além em busca de um aprofundamento pessoal e intelectual que não existiria sem a indicação.
É nessa posição que escrevo, como escritor e também curador do pouco que tenho a transmitir, mas que preciso compartilhar. A partir da responsabilidade de devolver as oportunidades de aprendizado que tive, e ainda tenho, para beneficiar alguém, porém atento às dificuldades de levar isso ao outro, dificuldades que conheço muito bem, porque também são minhas dificuldades. O Pantagruelista volta agora com a mesma proposta, uma curadoria confiável em filosofia, literatura e arte e a introdução de ideias que rompam nossa homeostase mental, mas dessa vez com fôlego renovado para criar esse estado fértil de entropia cognitiva.
