Morreu uma editora. Suspeitos: Super-heróis, picolés e ignorância, os infinitos da nossa escassez.

Morreu uma editora. Suspeitos: Super-heróis, picolés e ignorância, os infinitos da nossa escassez.

"Sofremos, e não se trata apenas do brasileiro, de uma aceitação completa do nosso papel de consumidor."

 
Texto publicado originalmente em 29 de Julho de 2015

Charles Cosac. Foto: Andreá Graiz / Agência RBS

No fim de 2015, Charles Cosac anunciou o fim de sua editora, a Cosac Naify. Passado o choque inicial de perdermos uma das melhores editoras do país e cumprido o período de luto necessário - quando surgiram muitos textos emocionados, enfurecidos e desolados - decidi me colocar agora para pensar um pouco sobre o que aconteceu.

A Revista Piauí publicou uma entrevista de 10 minutos cedida por Charles Cosac onde ele entra em detalhes sobre as operações e o fim da editora. Sem pudores, ele conta como a editora se entregava à arte de fazer o livro, ainda que isso significasse não agir como editora, ou seja, aceitavam comprometer a lucratividade por um resultado minimamente melhor:

“[A Cosac Naify] vivia a vida do livro, você entende? Ela não vivia a vida editorial, era tudo em função daquele projeto que estava em pauta. Então muitas oportunidades se perderam assim, eu acho.
[…]
Ela foi muito espontânea, totalmente amadora. Assim, de dar pena. A gente já vendeu livro assim, cada livro que a gente vendia a gente perdia 10 reais.”

Uma coisa é fidelidade à linha editorial e outra é vender um livro que cada exemplar dá 10 reais de prejuízo. O que me vem à mente é a ideia de que a Cosac Naify foi uma editora quase obscena em seu funcionamento. Mas logo que penso isso percebo que não é o caso, supor obscena uma editora tão refinada, e que sempre entregou livros excepcionais, seria de uma injustiça tremenda. Não, a Cosac Naify foi uma excentricidade que em seu funcionamento bizarro respeitava o leitor e o livro, em suas profundidades e histórias.

Livros Cosac Naify

Apesar de todo esse problema interno da editora, olho para outros ramos da economia e percebo que existem empresas que esbanjam ainda mais sem que sofram o mesmo destino da Cosac. No Brasil as comidas Gourmet e as cervejas especiais e importadas continuam ocupando espaço mesmo durante o período de recessão. São produtos mais caros que o convencional e muito mais supérfluos que livros, chegamos ao ponto em que dois picolés de grife chegam a custar tanto quanto um livro da Cosac Naify e mesmo assim o brasileiro continua consumindo mais picolés que livros. Ou o calor realmente é extremo e derreteu nosso cérebro ou existe outro problema relacionado ao fim de uma editora e, em especial, relacionado à quase inexistência de grandes casas editoriais que tenham um mínimo de segurança financeira para ousar em projetos gráficos e títulos menos populares.

Um país com 200 milhões de pessoas não conseguiu manter aberta uma editora que nem sequer se preocupava em lucrar. Sei que existe todo o problema da valoração subjetiva dos produtos e seu custo relativo para o comprador e isso explica porque talvez seja mais interessante ser visto comendo um chocolate caro do que lendo Drummond, porém entender o mecanismo do problema não nos faz compreender porque no Brasil preferimos outras coisas ao livro.

Questiono se talvez não se trata de um primado da imagem porque os cinemas continuam muito populares e hoje ditam o mercado cultural de massa. Junto do cinema há também a popularidade das séries de televisão e, em um país onde até os universitários são analfabetos funcionais, não é mais nenhuma surpresa ver que a imagem se sobrepõe à palavra. Não que isso seja por si só um problema, já que toda forma de arte visual tem sua importância e também são essenciais para a formação humana e intelectual. Mas acredito que nessa sobreposição da imagem ao texto, e a consequente marginalização do livro, a essência do problema se confunde com o que seria apenas moda, gosto ou adequação de mensagem.

Birdman - Pôster minimalista. Por Lewis Dowsett

O analfabetismo funcional nem sempre é perceptível, especialmente na rotina diária quando existem outros costumes que mascaram o não entendimento de um texto, bem como a falta de contato com textos mais complexos e exigentes. Todavia, existe um problema gravíssimo que é a ausência de alfabetização para lidar com imagens, entender o que se passa em um filme, as nuances daquilo que é exibido, as formas de interpretar uma pintura. Supor que não lemos porque a imagem venceu é na verdade um argumento raso. O que venceu, e não percebemos ainda, é a completa alienação do raciocínio crítico. Sofremos, e não se trata apenas do brasileiro, de uma aceitação completa do nosso papel de consumidor.

Os gastos com o que chamamos de cultura não são necessariamente pautados por um retorno específico em termos de significado, atividade intelectual ou experiência, seguem quase exclusivamente um padrão de entretenimento simples aliado a um movimento de massa fortemente direcionado por grandes empresas do ramo. Não pensamos o cinema, mas também não nos permitem fugir dele, há uma cobrança social para que façamos parte, porém só até certo ponto. É aceitável escolher entre Marvel e DC, porém completamente fora da lógica atacar ou ignorar ambas, ou melhor, até é possível, mas ninguém consegue fugir por muito tempo do circo montado por inúmeras séries de televisão, filmes e até livros já que a nova moda das editoras, depois dos livros de colorir, é editar livros de youtubers famosos.

Dessa forma, não basta apenas culpar as livrarias, as editoras, as produtoras e os cinemas. É preciso lembrar que ao contrário da Cosac Naify, o lucro é essencial para a existência desses ramos, bem como qualquer outra atividade em nossa sociedade. Dessa contingência surgem duas saídas, uma delas é a louvável seriedade de algumas empresas como a Companhia das Letras que vende sim livros de youtubers e de colorir, mas também usam seu espaço para cumprir uma responsabilidade e possuem em seu catálogo grandes nomes da literatura, inclusive escritores brasileiros relevantes mas que infelizmente vendem pouco.

A outra saída é, atentos à impossibilidade de fugirmos ao mercado de consumo fácil, estarmos sempre conscientes das forças que nos empurram para atividades e experiências abaixo do que precisamos e merecemos. É preciso lembrar que gastar dinheiro em uma sociedade capitalista também é uma decisão política e que a arte na qual investimos é a arte que terá mais fôlego para se perpetuar e cooptar nossa atenção. Nos resta decidir se preferimos os excessos de uma Cosac Naify ou as obscenidades dos filmes de super-heróis que custam o PIB de alguns países pequenos. O Brasil é inóspito para a arte, seja literatura, cinema, música ou artes visuais, mas precisamos recusar essa panaceia de que tudo o que nos falta pode ser entregue por uma multinacional do entretenimento. Tomemos para nós a responsabilidade sobre nosso desenvolvimento cultural ou haja dinheiro, barulho, explosões e luzes fortes para nos distrair em nossa aridez particular.