Decair à margem porque a sanidade empobrece

“Paguei com porções de delírio e de um tipo de dúvida que mistura do bom e do mau para produzir na consciência a tortura ambígua dos vacilantes” - Antonio Cestaro
O exemplar resenhado foi uma cortesia cedida ao Pantagruelista pela Editora Alaúde.
A racionalidade das pessoas de bem é a bússola que aponta sempre para a certeza, ainda que quase sempre só fantasiada de verdade. Do mundo da decência ficam à margem os que por escolha ou por natureza se apontam para fora da certeza coletiva, e é desses apagados sociais que surge a poética da ação subversiva, um delírio ou uma busca, a forma mais bem acabada de ficar à margem e por contraste colocar em xeque a bússola social.
No romance “Arco de virar réu” de Antonio Cestaro, a esquizofrenia marcadamente biológica surge como um poço para dentro do irmão do narrador, poço esse que o próprio narrador se pega a explorar fascinado. A falta de pudor nessas investigações atrai as censuras da família, uma preocupação com os efeitos que a observação constante da patologia pode lhe trazer. Entretanto, a busca pelo fundo desse escuro encontra um multiplicador na sensibilidade e na falta daquela certeza do “ser de bem”. É nessa despreocupação com a decência e o pudor que surge um marginalizado, é também na patologia que esses caminhos se chocam vindos de extremos opostos. Em Arco de virar réu é a patologia multiplicada na alma espelho do narrador.
A linguagem em primeira pessoa se desmancha e se confunde em tempo e espaço demolindo a possibilidade de uma sanidade literária, porém os cacos provenientes dessa demolição se enchem de riqueza interpretativa e imagética justamente na medida em que impedem uma leitura única e linear. A constância do texto é meramente estrutural, vem dos trechos que intercalam a narrativa com falas que nesse surgir esquizofrênico beiram também o poético, sendo inclusive onde a técnica de Cestaro se mostra mais bem polida.
Os rompantes de textos aparentemente desconexos são as falas, e depois pensamentos, esquizofrênicos que começam a ser ditos pelo irmão e ao longo do texto se confundem com a própria entrega do narrador ao problema dessa mistura proveniente da insanidade. Todavia, quando visto por dentro, esse processo de enlouquecimento é na verdade um enriquecimento pessoal no campo da experiência subjetiva que se coloca dominante ao ponto de sufocar a própria noção de realidade.
O romance de Antonio Cestaro, mesmo tropeçando em alguns momentos é, entre outras possibilidades, uma exploração da precariedade das fronteiras entre bem e mal, sanidade e loucura, identidade e desespero. Ao fim, o livro é um convite à releitura, numa reestruturação do leitor que se aproxima um pouco do que sofrem os personagens e esse campo minado de onde nenhuma intepretação sai ilesa é talvez o feito mais importante em Arco de virar réu.
