Caos em sentido bíblico: o trabalho de Nise da Silveira

“A pintura tornará visível a atividade obscura das forças instintivas que se opõem à desagregação psíquica.” – Nise da Silveira
Motivo de exploração incessante, o inconsciente e as relações dessa estrutura profunda da mente são por excelência uma barreira que a psicologia e a psiquiatria tentam compreender há anos. Entretanto, isso não significa que seja intransponível e a obra de Nise da Silveira está aí para nos mostrar um dos muitos caminhos possíveis, assim como nos aponta Hilda Hilst através de seus escritos.
Com o lançamento do filme “Nise – O coração da loucura”, houve uma popularização do trabalho pioneiro que a psiquiatra alagoana colocou em prática no Brasil onde desenvolveu com pacientes psiquiátricos internados um método de dar-lhes a expressividade plástica como uma linguagem que expusesse de uma forma mais ou menos livre o que desejassem. Seus livros são caros e difíceis de encontrar pela falta de oferta (e talvez de demanda, já que muitos admiradores de Nise da Silveira não vão além do filme), portanto analiso aqui a introdução que ela escreveu para a exposição das criações de seus pacientes (ou melhor, clientes como ela preferia se referir) no museu de Arte Moderna em 1975.
Ainda que nomes importantes da pintura brasileira como Emygdio de Barros, Raphael Domingues, Carlos Pertuis e Fernando Diniz tenham saído diretamente da esfera de influência criada por Nise da Silveira, é importante notar logo de início que seu interesse não é na criação artística, mas na expressividade dos pacientes através de uma linguagem plástica, visual:
“Quem estudar demoradamente a série de imagens pintadas por esquizofrênicos ficará convencido de que na produção plástica está o caminho menos difícil, para acesso ao mundo interno desses seres tão herméticos.”
Nise usa um termo perfeito para unir formas de expressão tão abstratas e singulares como as que se acumulavam ao longo dos anos de terapia com tantos pacientes, o que ela viu desenvolvido por seus pacientes era “um caos em sentido bíblico”:
“...o estudo atento dos casos de pintura de esquizofrênicos levará o pesquisador a verificar que não está diante de rabiscos tumultuosos lançados a esmo que lhe permitam usar as etiquetas de “deterioração” ou de “demência”, mas de um caos em sentido bíblico, ou seja, da massa confusa de onde todas as coisas tiveram origem. ”
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“Fragmentado o ego, desorganizadas as funções de orientação do consciente, caídos os diques que mantinham o inconsciente a distância, revela-se a psique subterrânea, deixando descoberta sua estrutura básica e permitindo que se tornem perceptíveis seus processos arcaicos de funcionamento dos quais se originam os temas míticos (mitologemas).”
A documentação feita por Nise da Silveira, bem como sua interpretação das expressões plásticas de seus pacientes precisam ser vistas com o tato necessário para compreender que o terapeuta serve tanto como intérprete e tradutor daquela linguagem visual como receptor e crítico, ou seja, nesse momento de intermediação é preciso separar a tradução e as estruturas impostas por outra linguagem, outra mente, outra consciência sobre a mensagem crua exposta originalmente pelos pacientes. Mesmo com essa cautela, é incrível a aproximação feita pela psiquiatra, especialmente se levarmos em conta que seu estudo envolve uma busca por estruturas de consciência e pelo funcionamento do inconsciente:
“Outra série pintada por sapateiro inculto apresenta surpreendentes analogias com temas do mito de dionysos. Os motivos são mulheres com cabeça de vaca ou dançando, o bode, o sátiro, uvas, velhos barbudos semelhantes ás representações arcaicas daquele deus. Nos desenhos de outro autor aparecem também o sátiro, o cacho de uvas nas mãos de um homem jovem conforme é figurado o dionysos menos antigo. ”
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“Povoam o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente os mais estranhos seres místicos e animais fabulosos, muitas vezes difíceis de correlacionar a suas matrizes arquetípicas por se apresentarem em abundância tumultuosa, misturarem-se, condensarem-se entre si. ”
Nise resume o objetivo de dar aos pacientes a chance de comunicação através da atividade plástica:
“A pintura tornará visível a atividade obscura das forças instintivas que se opõem à desagregação psíquica.”
Pioneira e engajada, a vida de Nise da Silveira não se resume apenas ao seu trabalho como psiquiatra, ainda resta muito o que inspirar e aprender com essa mulher que trouxe a psicologia de Carl Jung ao Brasil e descobriu alguns dos grandes gênios artísticos do país.
