“Você matou meu filho!”: Relatório expõe o funcionamento da Polícia Militar

“Há agentes do Estado com 19, 20, 40 ‘autos de resistência’, e isso soa estranho: tanta resistência, tantos homicídios, em cima de uma só pessoa” - Defensor Público do RJ
A ONG Anistia Internacional publicou ontem (03/08/2015) seu relatório mais recente acerca das mortes causadas por intervenção policial. Intitulado “Você matou meu filho!” o documento traça um panorama das mortes extrajudiciais que ocorreram no Rio de Janeiro entre 2014 e 2015, mais especificamente na favela de Acari. Para isso foram cruzados entrevistas, depoimentos e estatísticas de diversas fontes que terminaram por apresentar um retrato alarmante mas infelizmente esperado acerca da atuação da Polícia Militar no Brasil.
O relatório começa por esmiuçar as obrigações humanitárias do Estado brasileiro garantidas pela Constituição e por Tratados internacionais. O ponto de partida é o direito à vida, considerado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como essencial, pois sem ele não é possível que os outros direitos sejam exercidos.
“Por um lado, o Estado tem a obrigação de adotar as medidas necessárias não só para prevenir e penalizar a privação da vida como consequência de atos criminosos, mas também evitar as execuções extrajudiciais cometidas por suas próprias forças de segurança.”
Para evitar essas execuções existem documentos da ONU que recomendam alguns parâmetros básicos para o uso da força pelas forças policiais, sendo eles: Objetivo legítimo, necessidade e proporcionalidade. Porém o que se vê é que a Guerra às drogas legitima excessos e injustiças, inclusive com apoio manifesto de quase metade da população civil que, em pesquisa, disse concordar com a frase “bandido bom é bandido morto”.
Em uma tentativa anterior de diminuir a criminalidade e o uso da força policial vimos surgir as UPPs, porém o relatório aponta um possível sufocamento dessas iniciativas precárias por falta de uma política ampla que realmente inclua essas Unidades em uma lógica maior de combate à pobreza e aos abusos. Como se vê estatisticamente, o Brasil de hoje ainda é emperrado por seu passado: quase 80% das pessoas mortas por intervenção policial no Brasil são negras e pobres.
Os moradores das favelas convivem com táticas de execução. Casos em que policiais invadem casas sem mandado judicial e ficam de tocaia esperando o alvo da são tão comuns que possuem até nome: Troia.
“Um grande grupo de policiais, com várias viaturas, entra na favela fazendo muito barulho e depois sai. Só que dentro da favela ficam alguns policiais escondidos em alguma casa esperando os traficantes aparecerem. É uma tática para execução. Ninguém está querendo prender ninguém. Não dá nem pra chamar isso de tática, né? Mas a lógica, qual é? Quando os traficantes aparecem, os policiais que estão escondidos os executam” - Policial civil entrevistado.
A impunidade anda de mãos dadas com o excesso. O armamento pesado e seu uso indiscriminado obviamente geram danos colaterais que raramente são assumidos pela polícia. Mesmo mortes de criminosos rendidos ou feridos passam em branco, sem um julgamento adequado. Com apenas 5% a 8% dos homicídios sendo elucidados no Brasil, não é de se estranhar que nas forças policiais surja a prática de atirar antes e perguntar depois.
“Há agentes do Estado com 19, 20, 40 ‘autos de resistência’, e isso soa estranho: tanta resistência, tantos homicídios, em cima de uma só pessoa”. - Defensor público do Rio de Janeiro.
Apesar dos julgamentos serem individuais, o relatório também estuda as instituições responsáveis e os órgãos de justiça que permitem a manutenção desse cenário:
“Nos casos em que os registros da Polícia indicam que a vítima tinha ligação com o comércio de drogas ilícitas, a investigação apenas referenda o depoimento dos policiais de que a morte ocorreu em legítima defesa. A investigação não considera se o policial usou a força de forma necessária e proporcional. Ao contrário, todo o processo busca conferir legitimidade a esse homicídio, supostamente praticado por justa motivação e necessidade.”
Ou seja, há uma inércia quase proposital a ser superada antes das mudanças necessárias serem feitas. Porém as vítimas desse despreparo policial precisam justamente da polícia e da justiça para garantirem seu direito, entretanto muitas se sentem coagidas e amedrontadas de seguir adiante com as denúncias. O relatório aponta que vítimas, testemunhas e ativistas temem violências e ameaças pois é uma prática recorrente dos policiais militares.
Ao fim a Anistia Internacional lista as recomendações para diversas esferas do poder afim de tentar melhorar esse quadro. Entre eles, destaco as recomendações ao Congresso Nacional que pedem mais autonomia e funcionalidade para as Ouvidorias Externas da polícia, aprovação de uma lei que facilite a investigação de mortes violentas em que agentes do Estado estejam envolvidos e incorporar à Constituição os princípios de conduta da ONU relacionados ao uso da força por funcionários responsáveis pela aplicação da Lei.
O relatório “Você matou meu filho!” apresenta todas essas informações detalhadamente, com as devidas fontes e em um formato ideal para leitura. Há ainda relatos de casos que entremeiam e ilustram os dados técnicos do relatório, mostram o sofrimento humano que talvez possa parecer menos alarmante quando visto apenas por números. Em um assunto como esse é importante alinhar o empenho intelectual com a sensibilização em relação ao outro.
Você encontra o relatório completo aqui. As tabelas e gráficos usados aqui são todos da Anistia Internacional, retirados do relatório.
