Je suis Charlie? A polarização e o perigo da interpretação superficial

"Sair pela tangente cantando as ofensas e a falta de tato do jornal é a opção mais fácil, mas também a mais nociva para quem luta contra o preconceito e a intolerância."
Texto publicado originalmente em 15 de Janeiro de 2015.
"Migrantes: o que seria do pequeno Aylan se tivesse crescido?" | "Apalpador de bundas na Alemanha."
Já não deveria mais ser motivo de escândalo os desenhos publicados no periódico francês Charlie Hebdo, porém ressurge o debate sentimentalista com ganas de intelectualidade após a publicação de uma tirinha, assinada pelo editor Riss, que usa de forma satírica a imagem do menino sírio Aylan Kurdi que chocou o mundo quando seu corpo foi encontrado no litoral turco.
O sofrimento dos refugiados que chegam à Europa é tão gritante que se posicionar contra a ajuda humanitária é quase invariavelmente uma manifestação de racismo e xenofobia, a outra possibilidade é a defesa de interesses que se tornam cada vez mais claros conforme o debate se inflama. Durante a festa de ano novo na Alemanha dezenas de mulheres denunciaram roubos e crimes sexuais cometidos por homens que, segundo relatos das vítimas e policiais, seriam refugiados. Essas denúncias desequilibraram a balança a favor dos grupos contrários ao acolhimento de refugiados e tornou passional um debate que já se complicava em manter um nível aceitável de transparência e racionalidade.
Antes de pensarmos o presente é preciso lembrar que a França possui uma tradição literária e artística muito marcada pela sátira e pela transgressão que levou a casos históricos de censura devido ao escândalo que esses artistas causavam. Entre esses, Marquês de Sade, François Rabelais e Voltaire foram perseguidos por abordarem de forma afiada temas sensíveis à sociedade de seu tempo e isso lhes custou caro. Com o Charlie Hebdo a tentativa de censura foi através da violência vinda de um grupo radical.
É óbvio que não se trata de comparar as tirinhas do Charlie Hebdo com a obra de Rabelais ou Voltaire, entretanto é importante lembrar a que tradição se filiam e a relação da sociedade francesa com esse tipo de obra quase insidiosa e subversiva. A noção de que toda forma artística tem que ser politicamente correta e construtiva é quase uma fórmula para estabelecer limites do aceitável tanto para o discurso escrito quanto o imagético. Ao passo que as atividades práticas e políticas possuem limites estabelecidos na lei, é importante ter um espaço de exploração onde seja possível revirar assuntos delicados mesmo de forma grosseira. A arte influencia na medida em que as atitudes e instituições são alteradas ou mantidas por ela, mas essa influência é resultado de um debate que não deve ser evitado sob o pretexto de que algo “passa dos limites” ou é ofensivo.
"Tudo está perdoado." Edição especial do Charlie Hebdo após o atentado.
O choque inicial é inevitável quando o jornal diz que o menino Aylan cresceria para molestar mulheres na Alemanha caso tivesse sobrevivido. A falta de cerimônia com a imagem que causou tanta comoção e o desrespeito generalizante não só com o menino como com os outros refugiados faz com que se aproxime demais a um discurso estreito e conservador. Porém essa é a interpretação superficial que tem sido perfeita para os intolerantes. O choque sentimental com a forma da exposição tem impedido que a tirinha seja sequer levada em consideração por quem defende o apoio aos refugiados.
Ainda assim a imagem também é um dedo apontado contra a cultura misógina. Que tipo de sociedade transforma o menino que morreu na praia em alguém que não respeita outras pessoas? Mostrar o menino crescendo e suas feições se tornando bizarras ofende, essa é a parte óbvia, mas aqui a tirinha também fala pelo que não se vê: as influências responsáveis pela formação do garoto. Essas influências têm que ser expostas, inclusive a relação entre misoginia, baixos níveis educacionais e a forma como muitas nações pobres são exploradas por países ricos, como a Alemanha e a França, que agora precisam lidar com as pessoas cujo destino tem relação direta com sua política externa.
Sair pela tangente cantando as ofensas e a falta de tato do jornal é a opção mais fácil, mas também a mais nociva para quem luta contra o preconceito e a intolerância. Se ausentar do debate político não significa retirar seu respaldo, pelo contrário, é dar carta branca para que o outro lado atue sem restrições. A ambiguidade do jornal fica em aberto e quem tiver sangue frio para pensar ao invés de se ofender pode usar isso a seu favor.
Na idade média o bobo da corte tinha liberdade até para criticar o anfitrião que o havia contratado e em muitos casos os excessos do bobo foram também sua desgraça. O Charlie Hebdo pagou caro por trabalhar além dos limites considerados seguros e de bom gosto, mas não se pode deixar o calor das emoções apagar a importância daquele que se aventura em terreno proibido e nos joga na cara questões obtusas e controversas. A nós cabe digerir e apontar o contexto em que aquilo se encaixa, criar um debate em torno da ambiguidade satírica e aprender que mesmo no exagero, na ofensa e na subversão existem possibilidades múltiplas que precisam ser avaliadas fora de uma visão em preto e branco.
