Okja: Uma radiografia que expõe o funcionamento da Netflix

“Se for barato, [os consumidores] vão comer. ”
O texto a seguir contém pequenos spoilers do filme Okja.
Okja é o filme mais recente lançado pelo diretor sul-coreano Bong Joon-ho e se aproxima de outras obras suas como o Hospedeiro em que ele explora a relação entre homem e criatura e também a narrativa politizada já tão presente no Expresso do Amanhã. Entretanto, Okja é mais que uma mistura, o filme transita da comédia familiar à crueldade tremenda com elegância e significado e, ao contrário do Expresso do amanhã, evita um posicionamento didático quanto à política envolvida no filme, satirizando sem distinção todos os envolvidos na luta pelo destino de Okja e da multinacional Mirando Corporation. Entretanto, esse é o primeiro filme do diretor a ser produzido em parceria com a Netflix e o motivo principal dessa mudança é que a Netflix foi o único estúdio a dar plena liberdade criativa ao filme.
Louvável? Sim, porém há mais o que se debater quanto a isso.
Outros estúdios tinham rejeitado as cenas mais pesadas do filme, como as que envolvem o abatedouro e o processamento de animais para produção de carne, esperando uma narrativa menos séria e, portanto, menos incômoda e talvez mais lucrativa, voltada para o entretenimento das famílias que precisam desperdiçar tempo juntos. Felizmente, Bong Joon-ho bateu o pé em defesa do seu projeto.
O que há então na visão da Netflix que difere dos estúdios mais tradicionais?
O modelo da Netflix é uma forma disruptiva de abordar o mercado do cinema, inicialmente tomando o lugar da televisão à cabo e das locadoras e em seguida produzindo seu próprio conteúdo, competindo cada vez mais com Hollywood. Em seu papel de produtora de conteúdo a Netflix tem priorizado a variedade, como eles fazem questão de deixar claro. Por isso a empresa tem desde enlatados até séries envolvendo grandes diretores como House of Cards ou mais experimentais como Black Mirror. Todavia, a Netflix vende a imagem de engajamento e novidade, bem como de um bom mocismo empresarial que faz lembrar os tempos mais felizes do Uber, que agora caiu em desgraça, mostrando que a estrutura da empresa não se assemelhava à sua imagem pública.
O cancelamento de Sense8 é um lembrete importante do objetivo primário de todas as empresas, ainda que atualmente esteja na moda escamotear esse interesse: gerar lucro. A popularidade, sua lucratividade, justificou por si só o término de Sense8 em ruptura com um grupo menor de fãs, ainda que apaixonados. Por outro lado, os contratos com filmes do Adam Sandler, por exemplo, se multiplicam, pois são um sucesso de audiência, mostrando que não há obrigatoriamente uma responsabilidade criativa por parte da Netflix. A prova é o caso de 13 reasons why, em que o conteúdo não deve ser medido apenas em termos de qualidade, mas principalmente em relação à possibilidade nociva e à irresponsabilidade social de veicular tal série, que, apesar de tudo, foi um sucesso e (óbvio!) vai receber uma segunda temporada.
Aqui voltamos ao Okja. O que significa a liberdade plena dentro de uma empresa que não prioriza a qualidade, mas a variedade, a capacidade de atrair todos os espectadores desde que haja rentabilidade? Não significa muito, embora deva ser comemorado o fato de um diretor como Bong Joon-ho ter realizado sua obra. Não é o engajamento criativo ou político da Netflix que leva a uma decisão “esclarecida”, “engajada” ou “libertária”, mas uma busca lucrativa através do conteúdo indiscriminado, ou seja, como diz a Netflix, para eles, qualidade é variedade.
Quando a empresária linha dura da Mirando Corporation diz, apontando para as carcaças de animais como Okja pendurados no abatedouro:
“Fodam-se! Temos orgulho das nossas conquistas. Somos executivos trabalhadores. Fazemos negócios desse gênero. Este é o filé-mignon para os restaurantes chiques. Os mexicanos amam os pés. Pois é. Vai saber! Amamos a cara e o ânus, tão americano quanto torta de maçã. Cachorros-quentes! É tudo comestível. Tudo, exceto o grunhido. ”
A magnata concorda, para ela qualidade também é variedade e a política de produção da Netflix não se diferencia tanto assim do funcionamento da própria Mirando Corporation. Lá tem de tudo, filmes do Adam Sandler (belos salsichões cheios de cara e ânus) e até Okja (um incrível filé mignon) e nós consumimos o que nos cabe, mas como no filme, acreditamos na cara bem vista e irretocável que nos vendem através de um marketing sedutor, ainda que a derrocada do Uber esteja aí para nos instruir que devíamos ter um pé atrás diante dessas grandes empresas que, independente do marketing, estão dispostas a fazer muita coisa por alguns porquinhos de ouro.
Temos que compreender o quanto antes as empresas que hoje crescem a passos largos, mudando os mercados tradicionais e criando novos produtos, experiências e possibilidades, que muitas vezes nos servem bem. Elas rapidamente se tornam gigantes e dominam grandes fatias do mercado e, por consequência, de nossas vidas. Talvez não nos tornemos vegetarianos, mas podemos evitar a ignorância olhando para a cadeia produtiva de onde saem pés e filés, afinal, fomos avisados, não adianta reclamar, só o grunhido não se come e a passividade consumidora é o sonho de todo empresário, afinal, como diz a executiva desesperada por lucratividade:
“Se for barato, [os consumidores] vão comer. ”
