Deveres Humanos: A proposta de Saramago para um mundo melhor

“Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres.” - José Saramago
Desde cedo aprendemos na escola: o “cidadão” tem direitos e deveres que, dizem por aí, são iguais para todos. Entretanto, quando conseguimos avançar nos estudos, um pouco que seja, percebemos um gradiente que vai desde os cidadãos cheios de deveres e poucos direitos àqueles que tudo podem e de quem nada cobram. Uma situação que foi melhor resumida pelo escritor português José Saramago:
"Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força de lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria se alastra." - Saramago
Esse discurso, proferido durante o evento em que foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, abriu o jantar no dia 10 de Dezembro de 1998, exatos 50 anos depois da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tendo tanta atenção voltada para ele por alguns momentos, José Saramago aproveitou a oportunidade para propor uma contraparte a esse documento essencial, ele queria a Carta de Deveres Humanos.
Um pouco indigesto para a entrada de um evento de gala, ele deixou bem claro que não acreditava em avanços sociais vindos dos governos, por diversos motivos, em especial porque os verdadeiros governantes do mundo são as grandes multinacionais. E se queríamos algo, teria de ser feito através do povo, uma luta em que as exigências vêm do desejo de assumir para si as responsabilidades que vêm com nossos direitos.
“Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor”. - Saramago
Saramago faleceu em 2010 sem ver essa empreitada se realizar. Porém, em Julho de 2015 a fundação que leva seu nome, presidida pela escritora e tradutora Pillar del Río, reuniu intelectuais e especialistas de diversas áreas para debater a criação do documento proposto pelo escritor. A discussão tenta criar os primeiros direcionamentos para a criação da Carta, mas o projeto ainda deve receber muitas contribuições antes de tomar uma forma definitiva:
“Necessitamos trocar de enfoques e perspectivas, romper clichês para imaginarmos um mundo diferente, para nos atrevermos a cortejar uma utopia nova. Imaginar um mundo onde a fome, a ignorância e as mortes preveníveis não tenham lugar, onde não exista exclusão por motivos raciais, religiosos, de gênero ou econômicos.” - José Narro Robles, reitor da UNAM.
Nesse primeiro momento, Pillar del Río se destaca como a estruturadora do evento e abre o debate de forma ampla, ainda que o objetivo seja bem claro. Como grande conhecedora da obra do escritor e também por sua convivência pessoal sendo esposa dele, ela é a que melhor pode indicar o que Saramago tinha em mente, porém com a consciência de que se for levado a cabo, será um feito muito além das ambições de uma só pessoa.
“Vamos propor, difundir e oferecer nossos meios e possibilidades e trabalhar como se tudo dependesse de nós, porém estando muito conscientes de que não depende de nós.” - Pillar del Río, presidente da Fundação José Saramago.
O apoio ou crítica à instituição de uma Carta dos Deveres Humanos ainda depende da forma como esse documento vai adquirir e de seu conteúdo, todavia, no momento nos resta pensar e buscarmos as respostas difíceis para perguntas enganadoramente simples. Questionar o dever de toda pessoa, inclusive sua existência, pode ser o ponto de partida para algo que pode se tornar grandioso em tempos futuros. Nessas tarefas complicadas é importante lembrar a defesa que Alain de Botton faz acerca dos profissionais das áreas de humanas e as soluções que podem vir desse campo.
