A cooptação do intelectual e a justificação da selvageria. A Guerra do Vietnã por Noam Chomsky

“Quando consideramos a responsabilidade dos intelectuais, nossa preocupação principal deve ser quanto ao seu papel na criação e na análise da ideologia.” – Noam Chomsky
Intelectual que transita entre diversas áreas do conhecimento, entre elas a linguística, a filosofia e a história, Noam Chomsky acompanhou e foi um dos grandes críticos da campanha militar dos EUA no Vietnã e das complicações criadas pela política imperialista. No ensaio “A responsabilidade dos intelectuais”, publicado em fevereiro de 1967, Chomsky se baseia no trabalho anterior de Dwight Macdonald para se debruçar sobre o mesmo assunto, embora com um enfoque na guerra do Vietnã.
Chomsky começa afirmando um conceito que, para ele, devia ser óbvio. E como vemos se repetir até hoje, existem momentos em que até o óbvio corre o risco de se perder por conta da passividade geral e da desonestidade intelectual dos que têm poder:
“A responsabilidade dos intelectuais é falar a verdade e expor as mentiras. Pelo menos isso poderia parecer óbvio o bastante para ser aceito sem maiores comentários. Nem tanto. Para o intelectual moderno não há nada de óbvio nisso.
[...]
A mentira e a distorção que envolvem a invasão do Vietnã pelos americanos é agora tão familiar que já perdeu seu poder de chocar. Por isso é útil lembrar que apesar de novos níveis de cinismo serem alcançados constantemente, seus antecedentes óbvios foram aceitos com uma tolerância muda. ”
Do cinismo e da apatia surge um público que, para Chomsky, divide a crítica em racionais e histéricos, uma categorização que tem muito a dizer sobre o papel permitido ao intelectual:
“Os “críticos histéricos” aparentemente são identificados por sua recusa irracional em aceitar um axioma fundamental, a saber, que os Estados Unidos têm o direito de estenderem seu poder e controle sem nenhum limite, na medida em que seja possível. A crítica responsável não questiona esse pressuposto, mas, ao invés disso, argumenta que nós provavelmente não podemos “sair impunes” nesse momento e lugar específicos. ”
Nesse cenário de deslegitimação dos críticos mais contundentes que não se alinham às premissas básicas do debate proposto pela ideologia dominante, a ascensão do especialista como uma figura superior atua tanto para silenciar outras vozes quanto para legitimar determinados discursos:
“As decisões devem ser tomadas por “experts” que tenham contatos em Washington – mesmo se assumirmos que eles detêm o conhecimento necessário e os princípios para tomarem a “melhor” decisão, eles invariavelmente farão isso? E, uma questão logicamente anterior, a “expertise” é aplicável – ou seja, existe um conjunto de teoria e informações relevantes, que não estejam em domínio público, e possam ser aplicados na análise de política exterior ou que demonstre a razão das medidas atuais e que seja incompreensível para psicólogos, matemáticos, químicos e filósofos?
[…]
Especialistas responsáveis e apartidários dão conselhos sobre questões táticas; “ideólogos” irresponsáveis farão “monólogos” sobre princípios e se ocuparam de problemas morais e de direitos humanos, ou problemas tradicionais do homem e da sociedade, sobre os quais a “ciência social e comportamental” não tem nada a oferecer além de trivialidades. Obviamente, esses que bancam o tipo emocional e ideológico são irracionais, já que, estando bem de vida e tendo algum poder a seu alcance, não deviam se preocupar com tais assuntos. ”
O intelectual então, seguindo o papel conservador de ser apenas um técnico a serviço do Estado, deixa passar despercebida a própria estrutura em que se insere e ao reafirmar sua posição também defende outros fundamentos da sociedade em que está inserido:
“Quando consideramos a responsabilidade dos intelectuais, nossa preocupação principal deve ser quanto ao seu papel na criação e na análise da ideologia.
[…]
Podemos dizer que o técnico do Estado de bem-estar social encontra justificativas para seu status social especial e proeminente em sua “ciência”, mais especificamente na alegação de que a ciência social pode comportar uma tecnologia de engenharia social a nível doméstico ou internacional. Ele então vai adiante, propondo de um modo familiar uma validade universal para o que na realidade é um interesse de classe: ele argumenta que as condições especiais nas quais se baseiam sua reivindicação de poder e autoridade são, na verdade, as únicas condições gerais sob as quais a sociedade moderna pode ser salva; que o ajuste social dentro de uma estrutura de bem estar social deve substituir o compromisso às “ideologias totais” do passado, ideologias que se preocupavam com a transformação da sociedade.”
Assim, Chomsky aproxima o intelectual mais da dissidência e da crítica cética de forma que sua atuação seja primeiramente consciente de si mesma para só então tomar para si os problemas de seu tempo.
“Frequentemente as declarações de técnicos especialistas, sinceros e devotados, nos dão uma visão surpreendente das atitudes intelectuais que ocupam os bastidores da mais recente selvageria.
[...]
Permita-me finalmente retornar a Dwight Macdonald e a responsabilidade dos intelectuais. Macdonald cita uma entrevista com um tesoureiro de um campo de concentração que chora quando lhe contam que os russos vão enforcá-lo. “Por que eles fariam isso? O que foi que eu fiz? ” Ele perguntou. Macdonald conclui: “Somente os que estão dispostos a resistir à autoridade quando houver um conflito intolerável com seu código de moral, somente esses têm o direito de condenar o tesoureiro do campo de concentração. ” A pergunta, “O que foi que eu fiz? ” é uma que podemos muito bem direcionar a nós mesmos, enquanto lemos todos os dias sobre novas atrocidades no Vietnã – enquanto criamos, ou falamos, ou toleramos as mentiras que serão usadas para justificar a próxima defesa da liberdade.”
“A responsabilidade dos intelectuais” foi um dos textos que deu projeção política à carreira de Noam Chomsky, sendo que a base desse ensaio foi desenvolvida em seu livro “Poder americano e os novos mandarins”. Infelizmente, esse ensaio é atual e tem muito a dizer sobre os intelectuais também de nossa época e em nosso país, assim como o ensaio de Barthes sobre a crítica especializada, são advertências que não devemos esquecer.
